segunda-feira, 18 de junho de 2018

Aborto - O massacre dos inocentes contra os poderosos

“Ouvindo esta a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre; então, Isabel ficou possuída do Espírito Santo. E exclamou em alta voz: Bendita és tu entre as mulheres, e bendito o fruto do teu ventre!” (Lucas 1:41-42)
Muitos cristãos, evangélicos e católicos, até mesmo não-cristãos pró-vida, vêm denunciando o ponto mais frágil do argumento em favor da descriminalização ou legalização do aborto: a falta de um conceito claro do que significa ser humano (antropologia)[1] que dê garantias de que não se está matando ou interrompendo uma vida humana quando se aborta.
A discussão toda vai na direção do conceito de “pessoa”. Basicamente este é o argumento: um embrião ou um aglomerado celular, sem consciência, não pode ser considerado uma “pessoa”, logo, nesta fase o aborto seria eticamente viável. Para alguns ou algumas militantes pela legalização ou descriminalização do aborto, por “pessoa” entende-se aquele indivíduo biologicamente humano que desenvolveu consciência ou autonomia.
As consequências lógicas e éticas do argumento acima chegam a lugares antes inimagináveis. Hoje há filósofos envolvidos em reflexões sobre ética médica que defendem a seguinte hipótese: se até aproximadamente os 3 anos não há “pessoalidade” plenamente desenvolvida, não seria antiético matar uma criança até aproximadamente essa idade[2]. Parece “lógico”: se a fronteira entre aborto ético e antiético é a pessoalidade relacionada à consciência ou inconsciência, se argumentos plausíveis apontarem na direção de que uma criança não tem sua consciência plenamente desenvolvida até 3 ou 4 anos, logo, ela poderia ser morta, ou seja, um infanticídio eticamente justificável. As conclusões parecem absurdas, mas são perfeitamente compatíveis com o principal argumento que justifica a interrupção da vida intrauterina.
Com um pouco de discernimento filosófico, mesmo para não filósofos como eu, o que se percebe é que quem dá o tom ao argumento em favor do aborto é uma antropologia (definição de ser humano) radicalmente dualista. O conceito de ser humano que orienta a maioria dos que argumentam a favor da legalização do aborto se baseia em uma diferenciação radical e artificial entre a dimensão biológica e psicológica. Obviamente, neste caso, o que há é uma clara fragmentação ou fatiamento do que significa ser humano.
A ironia é que cristãos, sem necessariamente usar argumentos religiosos, insistem que seres humanos são mais do que meramente uma massa biológica, mas também, são mais do que mera consciência racional. Não admitem nenhum tipo de redução da condição humana a nenhum de seus aspectos constitutivos. E, de fato, nenhum deles pode ser contraposto ao outro sem que com isso sua integridade seja comprometida.
A biologia ou a neurociência não podem dizer quando a pessoalidade começa ou termina em termos seguros. Podem descrever a formação do sistema nervoso ou níveis de complexificação celular, mas produzir uma definição antropológica segura a partir dos dados que fornece, seria dar um salto metafísico estranho às ciências da natureza.
Mesmo sem uma clara definição, a antropologia que justifica o aborto se fundamenta em um dualismo radical. Ou seja, uma separação brusca entre “consciência” e “corpo”. Não há integralidade, mas sim uma dependência da antropologia moderna que reduz o ser humano apenas à esfera da “consciência”, o velho dualismo cartesiano, só que agora cheio de penduricalhos pós-estruturalistas. Em contrapartida, cristãos ortodoxos insistem: seres humanos são integrais e irredutíveis. E, isto, repito, tem relação com uma percepção elevada de dignidade humana.
Cristãos não acreditam em “neutralidade confessional” na orientação de políticas públicas.  Toda política pública se orienta ética e antropologicamente a partir de determinadas “confissões” ou “percepções” de mundo, ou seja, dependem de crenças ideológicas ou filosóficas, não necessariamente racionais. Cristãos liberais que flertam com agendas seculares pecam, por ingenuidade ou por devoção ideológica, quando usam o termo “estado laico” ao associarem o conceito a uma espécie de “não participação ou aplicação de uma cosmovisão cristã na esfera pública”. O discurso é claramente percebido quando se lê algo como o que a militante e defensora da legalização do aborto, Thamyra Thâmara, escreveu recentemente:
“a gente não pode querer que a nossa forma de pensar ou a nossa forma de se relacionar com a fé seja regra para a sociedade. Não podemos querer que religião seja lei, o estado é laico.”[3]
Se a preocupação é que não haja uma imposição de regras eclesiásticas na esfera pública, neste ponto, concordamos. Lutero, Calvino e Kuyper concordariam também. A distinção entre a esfera da igreja e a esfera jurídico-política deve ser mantida e com regras derivadas de suas respectivas estruturas. Mas isso não significa que cristãos, inspirados em seus pressupostos, não podem defender a plausibilidade pública de sua antropologia ante outras antropologias, como a utilizada pelos que defendem a legalização do aborto. Indivíduos pró-escolha (pró-aborto ou pró-legalização do aborto) fundamentam sua opinião ética a partir de conclusões metafísicas e não necessariamente científicas. A metafísica é um campo de reflexão filosófica que lida com a noção de origem e propósito das coisas. Neste sentido, cristãos falam sem pudor que possuem uma metafísica e antropologia melhores do que aquelas que territorializam o corpo, que separam a constituição psicológica da biológica, e que brincam de definir fronteiras entre pessoalidade e não-pessoalidade humanas.
Thamyra, talvez sem perceber, parte de uma antropologia com data e hora de nascimento, argumenta:
“Você sabia que lá no Uruguai o aborto pode ser feito por qualquer motivo até a 12ª semana de gestação, ou seja, antes da formação do sistema nervoso. O feto não iria sofrer.”
Observe que para ela, o limite moral para legalizar o aborto é o “sofrimento” ou “não sofrimento” do feto. Não há nenhuma menção sobre o potencial vital e os fascinantes e providenciais dispositivos biológicos antiabortivos (lembra da progesterona?) disparados no corpo de uma mulher para que aquela vida humana (e não de um cachorro, gato ou golfinho) logre êxito rumo ao nascimento. Não há nenhum receio por parte da autora a respeito das fronteiras difíceis de serem definidas pela ciência, filosofia, psicologia ou teologia. Falta reverência pela vida intrauterina, enquanto há uma forte consideração por uma ética fundada em pura subjetividade e em uma ideologia secular.
A autora desconsidera o fato de que mães que querem o sucesso de sua gravidez não tratam aquele que está em seu útero como “feto” ou “embrião”, mas como “filho”. A preocupação legítima com o sofrimento de mulheres com uma gravidez indesejada, porém associada a uma distinção entre “vida embrionária” e “vida humana”, tem um apelo emocionalista e um efeito retórico colateral que é um verdadeiro “tapa na cara” de outras milhares de mulheres que lidam com esta vida intrauterina em termos de “Eu-Tu” e não “Eu-Isso”[4]. Nenhuma mulher que conheço diz: “- Meu feto querido!” ou “- Meu embrião amado e tão esperado!”. Desde o início, seu corpo, afetos e expectativas projetam-se para um ser humano até seu nascimento, independente do lapso temporal. Para militantes da legalização do aborto essas mães são bobinhas e ingênuas.
A antropologia que orienta as conclusões éticas de muita gente que apoia a legalização do aborto tem fronteiras tão fluídas e arbitrárias que não seria nenhum exagero alegar que:
“o conceito de pessoalidade desconectado da biologia, se torna subjetivo e arbitrário — abrindo a porta para a desumanidade e opressão. Qualquer um em qualquer estágio da vida poderia ser rotulado ao status de ‘não-pessoa’ lhe sendo negado o direito a viver.”[5]
Baseado em tudo que fora discutido até agora, postula-se que:
  1. Qualquer defesa da legalização ou da não-legalização do aborto deve se basear em conclusões metafísicas e definições antropológicas precisas e claras, sem apelo sentimentalista;
  1. Depois de definida a antropologia, deve-se defender a plausibilidade e qual antropologia aprecia adequadamente a dignidade humana;
  1. A antropologia por trás do principal discurso pró-aborto é dualista, não-integral, com um fundo racionalista, sentimentalista e subjetivista;
  1. A defesa cristã de uma antropologia elevada, irredutível e integral não permite o apoio a nenhuma política pública de legalização do aborto sem que isso fira a consciência do cristão;
  1. A antropologia cristã está no cerne da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Vale uma consulta ao livro “Justice: rights and wrongs” de Nicholas Wolterstorff. Qualquer relativização deste princípio levará a humanidade a uma ética arbitrária. Basta lembrar de Richard Rorty, filósofo pragmatista americano, que defendeu no II Fórum de Filosofia da UNESCO (Paris, 1996), que a superação da noção de “direitos universais” é uma questão urgente, afinal, tal conceito têm raízes judaico-cristãs. Em seu lugar, seria necessária uma nova antropologia fundada em superioridade econômica, e um explícito escalonamento entre “humanos” e “sub-humanos”. Honesto, se partirmos da noção secular de que a antropologia judaico-cristã é obsoleta e não tem relevância pública, como indiretamente defendem secularistas travestidos de laicistas, inclusive cristãos.
  1. Seria irresponsável desprezar a noção de dignidade humana universal como um grande e incalculável legado da antropologia judaico-cristã ao ocidente. Sua importância não é de agora, está no coração de qualquer debate sobre direitos humanos. Uma discussão seriamente plural sobre a legalização do aborto deveria considerar interlocutores que se apoiam nesta sabedoria, sem o mito de neutralidade secular que se esconde em memes de laicização.
  1. Se entendemos que seres humanos, desde a concepção até a velhice, estão em permanente, integral e complexo desenvolvimento, garantir a proteção à vida desde a concepção, é garantir o desenvolvimento humano em todas as suas etapas. Não considerando nenhuma delas “não-humana” “menos humana” ou “sub-humana” em relação às outras. O problema é que a antropologia dualista ou naturalista tende a seccionar o desenvolvimento humano em etapas temporais estanques, em que cada fase se tem entidades diferentes. Este seccionamento ontogenético produz uma distorção metafísica que pode levar a conclusões como que se existissem fases do desenvolvimento da vida humana em que na verdade não podem ser consideradas intrinsecamente humanas[6]. Neste caso, bastaria argumentar, ainda que de maneira arbitrária ou subjetiva, que em uma determinada fase ainda não se tem um “ser humano” para justificar um aborto “ético”. Em outras palavras: acredita que o desenvolvimento humano é um direito? Então, garanta-o desde sua concepção.
Baseado nos postulados acima, concluímos que a resistência à legalização do aborto inspira-se em pelos menos três princípios: 1. Uma concepção de ser humano (antropologia) integral e elevada; 2. No direito que o ser humano tem à vida e a seu pleno desenvolvimento desde sua concepção até a velhice; 3. Na irredutibilidade de sua condição humana, ou seja, seres humanos não podem ser reduzidos nem à consciência/racionalidade, nem à esfera biológica e tampouco a nenhum de seus outros aspectos constitutivos.
Enfim, esses parecem ser princípios plausíveis e razoáveis para se tratar com cuidado posições éticas em relação a um tema tão sensível. A legalização do aborto e a defesa de sua prática de modo irrestrito, dependerão sempre de uma concepção reduzida da dignidade humana. E, conceber o ser humano menor do que ele é ou deveria ser é sempre uma violação dos direitos humanos, ou seja, violência.
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[1] O termo antropologia é usado neste texto em seu sentido filosófico, ou seja, como sendo o campo ou disciplina filosófica responsável pela definição ou que lida com a natureza humana. A antropologia filosófica trata do problema: O que é o ser humano?