sábado, 30 de novembro de 2019

Gálatas 5:16-26 - A Vida sob o Controle do Espírito



   O remédio para os graves conflitos interpessoais que agitavam as igrejas da Galácia é apresentado por Paulo no v. 16. As palavras “por isso digo” (
λέγω δέ indicam que o que está para ser dito é a solução para o problema descrito no v. 15. Assim, segundo Paulo, a única meio de superar aquela forte inimizade que havia entre os crentes galateus era a submissão à influência do Espírito Santo.
O Apóstolo descreve essa forma de viver como “andar no Espírito’ (πνεύματι περιπατεῖτε). O significado básico dessa expressão, conforme já sugerido, é um caminhar em que o indivíduo permite que o Espírito de Deus controle suas reações e guie a sua vontade (Veja tb. v.18). O homem que se dispõe a isso diz “não” para suas inclinações pessoais (Lc 9.23) e “sim” para as orientações do Espírito de Deus (Rm 8.5). 
Frise-se que só os cristãos podem dispor dessa maneira de viver, uma vez que somente neles o Espírito Santo habita, apontando-lhes o modo de proceder (Rm 8.9,14). Deve também ficar claro que andar no Espírito não é uma experiência mística, em que o crente tem sua personalidade anulada, vivendo como que num êxtase. Antes, trata-se de um estilo de vida a que o cristão se submete voluntária e conscientemente, sabendo que não existe outra maneira pela qual seja possível viver o cristianismo de modo real e satisfatório (Rm 8.8).
O que vem em decorrência do andar no Espírito é uma conduta em que a carne, ou seja, a inclinação pecaminosa do individuo, não é satisfeita, ou seja, tal tendência é como que mortificada (Rm 8.13). É claro que o Apóstolo não está dizendo aqui que o submeter-se ao controle de Deus levará o crente a uma vida sem pecado. A própria experiência de Paulo mostra que esse ideal é impossível neste mundo (Rm 7.15-25). Porém, é fora de discussão que o crente que se sujeita às orientações e influência do Espírito Santo não vive sob o domínio de suas inclinações naturais. Estas, é claro, não desaparecem num crente assim, mas também não são capazes de tomar as rédeas de sua vida e ditar-lhe a conduta. No cristão que vive pelo Espírito, o pecado mostra-se presente, perturbando-o, entristecendo-o e contrariando sua vontade, mas isso nunca até o ponto de estabelecer-se no centro de sua vida, reinando soberano (Rm 6.12-14).
Dando seguimento ao seu ensino, Paulo destaca que há no íntimo do cristão uma verdadeira batalha entre sua natureza pecaminosa e as orientações do Espírito Santo que nele habita. Conforme o ensino do Apóstolo, de um lado há as inclinações naturais tentando determinar a conduta do homem já regenerado, enquanto de outro lado há a atuação do Espírito que insiste em guiar a vida daqueles que pertencem a Deus (17). Paulo diz que essa batalha travada no âmbito da vontade faz com que as decisões morais dos crentes nunca sejam absolutamente livres. Antes, sempre resultam ou dos impulsos carnais ou da obra do Espírito de Deus.
Deve ficar claro que, com a frase “... de modo que vocês não fazem o que desejam” (NVI), Paulo não está dizendo que o crente não tem vontade própria. Antes, a frase aponta para o fato de que a vontade moral do cristão sempre sofre influências determinantes.  Com isso o Apóstolo resvala num tema da teologia cristã que tem sido objeto de calorosos debates: a vontade livre. Ainda que esse assunto tenha inúmeras ramificações, à luz do texto em análise parece certo dizer que, no que diz respeito ao cristão, a vontade moral sempre reage aos impulsos de uma entre duas forças, isto é, ou o crente toma decisões induzido por suas paixões carnais, ou o faz sob a direção do Espírito. Em todo caso, sua vontade própria sempre se expressa no campo da ética respondendo a fatores que a contrariam, mas que fatalmente a conduzem nesta ou naquela direção (Rm 7.19; Fp 2.13). Assim, parece que a liberdade plena da vontade, nos termos como é geralmente entendida, não encontra suporte para sustentação no ensino paulino.
O fato é que, no crente, a vontade é um misto de bem e mal. Por isso, não importa o rumo que tome, seu querer sempre será contrariado. Se optar pelo mal, sentir-se-á frustrado, pois o bem que ele aprova e no qual tem prazer não será alcançado. Se, por outro lado, optar pelo bem, terá de fazê-lo dizendo “não” para si mesmo, ou seja, para aquilo que seu coração naturalmente deseja (Lc 9.23; 1Co 9.27). Assim, enquanto o pecado estiver em seus membros (Rm 7.23), o cristão jamais poderá dizer que desfruta de plena liberdade em suas decisões morais.
Paulo sabia que as discórdias existentes nas igrejas da Galácia (vv. 13-15) eram o resultado indesejado daquela batalha entre os impulsos da carne a que aqueles crentes estavam dando vazão, e as orientações do Espírito. Sobre eles recaía, portanto, o dever de administrar corretamente essas inclinações, refreando a natureza pecaminosa e submetendo seus desejos aos ensinos do Espírito.
Isso tudo conduz o Apóstolo a uma implicação óbvia: se era ao Espírito que os galateus deviam sujeição, isso significava também que, conforme argumenta em toda a carta, seu senhor não poderia ser a Lei (18). Nesse ponto, é como se o Apóstolo estivesse a dizer: “Essas brigas que há entre vocês são reflexos do domínio da carne em suas vidas e só poderão desaparecer se houver submissão às orientações do Espírito Santo. Esse Espírito, de fato, atua em vocês, opondo-se às suas inclinações carnais. Ora, se o Espírito de Deus quer controlar sua vida, é óbvio que sua obediência deve ser a ele e não às normas da Lei Mosaica, como os mestres judaicos têm lhes ensinado”.
De tudo isso se depreende o seguinte: há três influências sob as quais é possível que um crente se coloque. Essas três influências são: a Lei, a carne e o Espírito. Sob as duas primeiras, o cristão jamais conseguirá agradar a Deus (Rm 7.9; 8.8) e, para desespero de Paulo, era exatamente a essas duas que os galateus se sujeitavam. Já a terceira influência, a do Espírito, esta permanece a única sob a qual o crente pode realmente fazer a vontade do Senhor (v.16). Debaixo dela, a força da carne é neutralizada e o cristão é capacitado sobrenaturalmente a cumprir as justas exigências da Lei, da forma como Deus requer (Rm 7.6; 8.4).
Nos vv. 19-21, o Apóstolo apresenta uma lista da qual constam quinze “obras da carne” específicas. Paulo pretende mostrar vividamente o modo como as inclinações na natureza pecaminosa se manifestam no dia-a-dia das pessoas que se deixam dominar por ela. Fica claro aqui, antes de tudo, que a carne induz à realização de certas obras e que essas obras são facilmente identificáveis. O termo traduzido na NVI como “manifestas” (φανερὰ) indica que tais obras são praticadas sem qualquer discrição, sendo expostas diante de todos numa chocante demonstração de ausência de escrúpulos.
A lista de obras da carne pode ser dividida em quatro grupos distintos de pecados. O primeiro deles abrange os pecados de natureza sexual. Estes são: imoralidade sexual, impureza e libertinagem (19). O termo traduzido por “imoralidade sexual” (πορνεία) abrange todos os tipos de relação sexual ilícita, desde a fornicação até a prostituição.  Já a “impureza” (ἀκαθαρσία) sugere a idéia de podridão no íntimo, ou seja, as más intenções na área sexual ainda que também signifique imoralidade de um modo geral. Quanto à “libertinagem” (ἀσέλγεια) a palavra poderia ser traduzida como “lascívia” (cf. ARA) ou “sensualidade”. Porém, o termo pode denotar um comportamento realmente ousado, próprio daquele que se entrega à licenciosidade, assumindo um modo devasso, impudico e dissoluto de viver.
O segundo grupo de obras da carne mencionado pelo Apóstolo pode ser classificado como composto de pecados de natureza religiosa. Paulo menciona, no v. 20, a idolatria (εἰδωλολατρία) e a feitiçaria (φαρμακεία). A primeira é a adoração de ídolos ou imagens de falsos deuses. Quanto à feitiçaria, a palavra sugere inicialmente a prática da magia que faz uso de drogas e poções (a partir do termo grego temos, em português, a palavra “farmácia”). Porém, num sentido amplo, “feitiçaria” é qualquer arte de bruxaria, magia ou encantamentos. A prática popular de “simpatias” insere-se perfeitamente no conceito que Paulo repugna aqui. Assim também o uso de drogas no preparo do indivíduo para exercícios mentais próprios das religiões orientais.
É curioso notar que a natureza pecaminosa também inclina o homem para a religião falsa e para a superstição. Assim, os atos cultuais realizados pelos adeptos de qualquer seita idólatra e as crendices populares não são meros frutos da ignorância, do costume ou da tradição. Antes, refletem o caráter reprovado de quem se envolve com elas; um caráter em que a natureza pecaminosa reina governando a mente e as ações do indivíduo. Essa é a “psicologia da religião” ensinada por Paulo!
Como é sabido, a sociedade pagã do primeiro século da Era Cristã era caracterizada tanto por um baixo nível moral como pelo desvio religioso e, sem dúvida, os leitores da epístola estavam familiarizados com as formas de comportamento referidas pelo Apóstolo. Portanto, não há dúvida que, nesse ponto, seu ensino assume um caráter vívido, pois no contexto em que viviam os galateus, não faltavam exemplos das coisas até aqui mencionadas. Assim, ao definir toda essa conduta como carnal, Paulo incita seus leitores a não adotarem o comportamento próprio da sociedade que os cercava.
Depois de listar os pecados na área da religião, Paulo prossegue enumerando os pecados de natureza relacional, isto é, aqueles que normalmente se insinuam no âmbito do convívio social, destruindo os relacionamentos interpessoais. Esse grupo concentra o maior número de pecados (oito, ao todo), certamente porque era exatamente na esfera da convivência que os galateus tinham mais problemas (vv. 14-15, 26). São eles ódio, discórdia, ciúmes, ira, egoísmo, dissensões, facções e inveja (20-21).
O ódio (Lit. “ódios”. Gr. ἔχθραι) não é aqui um mero sentimento. Trata-se da manutenção de inimizades. O homem carnal considera-se inimigo de certas pessoas e age como tal, alimentando suas hostilidades. Na igreja, é o crente que sempre está “de mal” com alguém; constantemente construindo barreiras entre si e os outros. Trata-se do homem que tem uma forte inclinação para arrumar encrencas e geralmente é bem sucedido nesse propósito.
O vocábulo “discórdia” (ἔρις) denota a rivalidade que aflora em contendas. Discussões verbais (1Co 1.11; Tt 3.9) e provocações (Fp 1.15) são manifestações desse tipo de pecado. Quanto ao ciúme (ζῆλος. Daí a palavra “zelo”, em português), seu significado aqui é o sentimento de inveja, o incômodo que nasce no coração de alguém quando vê o sucesso, o destaque ou o simples bem estar de outrem (At 5.17). O invejoso não se conforma com as conquistas de outra pessoa e, cedo ou tarde, esse seu inconformismo se expressa em maledicência e oposição. É por isso que Tiago coloca a inveja na raiz de todas as confusões e coisas ruins que surgem na igreja e em qualquer outro grupo de pessoas (Tg 3.14-16).
A palavra que vem a seguir é “ira” (Lit. “iras”. Gr. θυμοί). Significa, basicamente, raiva e furor (Lc 4.28-29). Paulo tem em mente aqui as explosões de cólera, sempre acompanhadas de gritos, ameaças e ofensas. O homem carnal reage de modo agressivo bem depressa e por muito pouco. Ele também se orgulha por ser assim e até se gaba dos ataques que, cheio de ira, empreendeu contra seus semelhantes nesta ou naquela ocasião.
O próximo item na lista de Paulo é “egoísmo”, que no texto também aparece no plural (ἐριθεῖα). O vocábulo denota a ambição egoísta, também mencionada em Tiago 3.14-16 como a causa de tudo o que é ruim nas relações entre os homens. O indivíduo que pratica esse pecado é aquele que faz as coisas visando a glória pessoal, em detrimento dos interesses e bem estar dos outros, chegando mesmo a desrespeitá-los (v. 26). Para ele o cuidado e a promoção de si mesmo está acima de tudo e de todos (Fp 2.3-4).
Quanto às dissensões (διχοστασίαι), estas são as divisões e partidos que muitas vezes se insinuam até mesmo dentro das igrejas (Rm 16.17). Já as facções (αἱρέσεις), referem-se a conflitos de opinião (1Co 11.19). Da palavra grega que aparece aqui surgiu o termo “heresia”, usado para descrever conceitos doutrinários que causam cisma dentro da igreja.
A última palavra pertencente à terceira classe de pecados alistados por Paulo é traduzida como “inveja” (φθόνοι). Seu significado é, basicamente, o mesmo atribuído a ζῆλος (Veja acima).
O quarto e último grupo de obras da carne abrange os pecados de desregramento que Paulo especifica mencionando a embriaguez e as orgias (21).
A embriaguez (μέθαι) é o uso abusivo da bebida alcoólica. O cristianismo não ensina a abstinência total do álcool (Jo 2.3-10; 1Tm 5.23), mas reprova a bebedice (Pv 20.1; Is 5.11-12,22; 1Tm 3.2-3,8; Tt 2.3). Diferentemente da concepção moderna, a Bíblia se refere à embriaguez como um pecado que impõe a quem o pratica a necessidade de arrependimento (Rm 13.13-14) e não como uma doença pela qual o homem não pode ser responsabilizado. Assim, Paulo alista a bebedice entre as obras da carne, mais especificamente entre os pecados de desregramento, vendo-a como um reflexo da busca egoísta e irresponsável pelo prazer que, inegavelmente, a bebida traz tanto ao paladar quanto aos sentimentos (Sl 104.14-15; Pv 31.6-7). O beberrão é reprovado por Deus porque atende aos impulsos de sua natureza pecaminosa que, na bebida, busca a todo custo o prazer do corpo e o alívio da mente. Ademais, invariavelmente, o resultado dessa busca descontrolada é a escravidão ao vício, a miséria (Pv 21.17) e a degradação do indivíduo (Is 28.7; Ef 5.18).
A mesma busca desenfreada pelo prazer dos sentidos que move o escravo da bebida também está presente naqueles que se entregam às orgias. A palavra usada por Paulo aqui (κῶμοι) denota um banquete festivo em que as pessoas se entregam à glutonaria e a todos os tipos de prazer corporal. A orgia sexual compõe o quadro que a palavra sugere. No ambiente pagão do século I, essas festas devassas eram comuns (1Pe 4.3), fazendo parte, inclusive, dos cultos devidos aos deuses.
   Com a expressão “coisas semelhantes”, Paulo indica que a lista de obras da carne aqui apresentada não é exaustiva. Ele também lembra que já havia falado sobre essas coisas com os galateus numa outra ocasião, provavelmente ao tempo de sua visita àquela região (At 14.1-23). Naquela oportunidade, assim como agora, o Apóstolo advertira a todos que “aqueles que praticam essas coisas não herdarão o Reino de Deus”.  Isso significa que as pessoas que vivem sob o domínio das obras da carne revelam sua verdadeira condição espiritual de incrédulos perdidos. Ainda que muitos se apresentem como cristãos, num discurso que revela conhecimento das principais doutrinas bíblicas e até certo envolvimento com a igreja de Deus, o fato é que uma vida onde o pecado reina jamais experimentou realmente a redenção que Cristo dá. A verdade é que quem vive no pecado, mostra que nunca foi liberto do pecado e, ao final, receberá o galardão do pecado (Ap 22.14-15).
Em contraste com as obras da carne, Paulo apresenta o “fruto do Espírito” (22). Há quem diga que a palavra fruto (καρπὸς) aparece no singular porque Paulo queria ensinar que as virtudes que vêm alistadas a seguir surgem todas juntas, como uma coisa só, na vida do homem espiritual. Isso, porém dificilmente estava na mente do Apóstolo, mesmo porque seria muito improvável que uma lição tão importante e surpreendente fosse transmitida por ele de forma meramente implícita. Ademais, a própria experiência cristã mostra que as virtudes espirituais nem sempre se desenvolvem simultaneamente na vida do indivíduo.
Assim, Paulo não tinha nenhuma lição oculta no uso do singular. Ele queria simplesmente afirmar que a obra do Espírito no crente resulta num produto e que esse produto se manifesta em virtudes variadas. A lição principal que Paulo dirige aos galateus com a menção do fruto do Espírito é que o caráter cristão nasce como resultado da obra sobrenatural de Deus e não em decorrência de uma rígida disciplina moral e legalista (Rm 8.4).
A virtude que encabeça a lista de Paulo é o amor (ἀγάπη) termo usado para descrever uma disposição favorável em relação ao outro, que chega ao ponto do sacrifício, se preciso for, para beneficiá-lo (2.20; 5.13). O amor é a forma como a fé verdadeira se expressa (5.6); e os galateus precisavam crescer nessa virtude, já que o convívio entre eles era marcado por terríveis discórdias (5.14-15, 26).
Paulo prossegue mencionando a alegria (χαρὰ) que é, basicamente, a doce satisfação que existe em quem tem os anseios realizados. Desse conceito se depreende que o invejoso é carente de alegria, posto que se sente frustrado por não ter o que é do outro. Esse era o caso dos galateus (5.26).
Na Epístola aos Filipenses, Paulo menciona a alegria mais do que em qualquer outro lugar. Curiosamente, ele escreveu essa carta quando estava em prisão domiciliar em Roma, o que demonstra que a alegria que advém da obra do Espírito é uma satisfação decorrente da consciência de que Deus está atuando e que, qualquer que seja o rumo das coisas, sua bondade boa e santa sempre estará por trás de tudo (Fp 2.17).  A alegria cristã também consiste em ter na pessoa e obra de Deus a principal fonte de vibração e entusiasmo (Fp 4.4).
A terceira virtude alistada como fruto do Espírito é a paz (εἰρήνη), conceito que contrasta com oito obras da carne mencionadas por Paulo nos vv. 20-21. Paz, considerada em seu aspecto interior, é serenidade mental (Fp 4.7). Exteriormente se expressa em harmonia entre as pessoas (Rm 12.18) e ausência de desordem (1Co 14.33). Deus é um Deus de paz (Fp 4.9) que nos chamou para vivermos em paz (1Co 7.15b).
Longanimidade (μακροθυμία) vem a seguir. Longânimo é aquele que permanece firme, perseverando mesmo em face dos mais severos ataques da vida e sendo paciente diante das provocações dos homens (2Tm 4.2).
O quinto traço do homem que vive no Espírito é a benignidade (χρηστότης), termo usado a princípio para descrever a pessoa que faz o bem, sendo generosa em seus atos de benevolência. O termo que vem a seguir, bondade (ἀγαθωσύνη) é quase um sinônimo de benignidade. Contudo, é bem provável que o apóstolo concebesse alguma distinção entre as duas palavras. No afã de manter mais nítida essa distinção, a NVI traduziu χρηστότης como “amabilidade”, ou seja, a postura de quem trata os outros com docilidade, livre de qualquer aspereza. De fato, há o consenso de que a primeira palavra se refere mais à atitude de alguém, enquanto a segunda denota uma carga maior de ação. Essas distinções são relevantes, pois pode-se encontrar alguém amável que não faz o bem; ou ainda alguém que faz o bem, mas não é amável. Assim, as duas virtudes juntas descreveriam o homem dócil que também é pródigo em seus atos de bondade. 
A lista de Paulo prossegue e fé (πίστις) é a palavra que vem a seguir. Considerando, porém, que a fé é um elemento básico nas relações do homem com Deus, constituindo-se no fator que possibilita o início da vida cristã (Rm 5.1-2; Gl 3.2), dificilmente Paulo, no presente contexto, incluiria a fé em Deus na lista em pauta. Fé em Deus é raiz, não fruto. Por isso, parece correto entender o termo usado por Paulo como “fidelidade”, aliás, uma tradução perfeitamente possível. De fato, a palavra πίστις é usada para descrever a pessoa comprometida e leal (Rm 3.3; Tt 2.9-10). Assim, certamente Paulo quer ensinar que o homem espiritual é alguém confiável, incapaz de trair a verdade (especialmente a doutrinária) e fiel nas suas relações com as pessoas. Os crentes da Galácia não tinham essa virtude (1.6; 4.14-16).
O vocábulo mansidão (πραΰτης) inicia o v. 23. Manso é o homem brando, aquele que não é dominado pela ira. Não se trata de alguém que nunca se irrita, mas da pessoa que não tem o rancor e a agressividade como marcas distintivas. Cristo, o modelo maior, se apresenta como manso (Mt 11.29), ainda que sejam notórias as suas eventuais manifestações severas de reprovação (Mt 21.12-13; 23.33). Andando em mansidão, o crente desestimula a discórdia, enfraquecendo o império das obras da carne dentro da igreja.
Pondo fim à sua bela lista, o Apóstolo menciona o domínio próprio (ἐγκράτεια) que é o controle das inclinações naturais. Literalmente a palavra aponta para o ato de agarrar ou segurar o eu, o que requer do crente um certo grau de empenho (2Pe 1.5-6). O domínio próprio se constitui no avesso do modo de vida dos incrédulos. Ensinar essa virtude produz grandes incômodos nos homens que vivem dando plena expressão aos seus instintos naturais (At 24.25).
Evocando o zelo das igrejas da Galácia pela Lei, Paulo, numa branda ironia, recorda que ninguém transgride os mandamentos ao praticar as virtudes que ele alistou (23 in fine). Assim, se quisessem viver sem quebrar a Lei, os galateus tinham que se colocar sob o domínio e influência do Espírito Santo, crescendo no fruto que esse mesmo Espírito produz. De fato, em outro lugar, Paulo ensina que o crente que vive segundo o Espírito tem um procedimento no qual se percebe o cumprimento substancial das justas exigências da Lei (Rm 8.4).
O Apóstolo insiste que não é a prática legalista que santifica o homem. Ele realça que para se livrar do domínio das inclinações do pecado é preciso, antes de tudo, pertencer a Cristo (24). Isso não significa que no crente o pecado está morto, mas sim que, quando passa a pertencer a Cristo, o homem experimenta a neutralização do poder da carne que, como um homem crucificado, se vê despojada de sua força. É claro que aquele que pertence a Cristo ainda comete pecados (1Jo 1.8-10). Contudo, ao crente são dadas condições de viver de tal modo que a iniqüidade não ocupe mais o trono de sua vida (Rm 6.12-14). Essas condições advêm da habitação do Espírito Santo nele.
Resta ao crente agora ser zeloso e submeter-se ao controle do Espírito que nele está (v. 16). Já vivemos no Espírito, ou seja, quando passamos a pertencer a Cristo fomos inseridos na esfera de atuação do Espírito de Deus. Isso é fato consumado. Agora, porém, é preciso andar no Espírito (24), o que não nos advém como num passe de mágica, mas sim implica o dever de acolher suas orientações com perseverança e responsabilidade.
Assim, o crente já está no Espírito, devendo agora andar como ele determina. Numa palavra, o cristão tem o dever de ajustar sua vida à nova realidade em que agora se encontra. Tal como o homem que entrou para o casamento deve conformar sua vida à realidade de alguém casado, assim também o homem que, pela conversão, entrou para a vida no Espírito deve andar como alguém controlado por esse mesmo Espírito.
Na Galácia, essa harmonização entre viver no Espírito e andar no Espírito ocorreria quando os crentes deixassem de lado o orgulho, as provocações mútuas e as invejas, o que reforça o ensino de que para andar no Espírito é necessária consciente e perseverante sujeição.

sexta-feira, 18 de outubro de 2019

A vinha de Nabote (1 Reis 21)

   A vinha de Nabote é uma história registrada em 1 Reis 21. Um estudo bíblico sobre a vinha de Nabote destaca o modo perverso com que Acabe e Jezabel se apoderaram da herança de um homem justo e temente a Deus.
A Bíblia diz que um homem de Jezreel por nome de Nabote possuía uma vinha que ficava ao lado do palácio do rei Acabe. Jezreel ficava localizada a cerca de quase quarenta quilômetros ao norte de Samaria, que era a capital do reino de Israel. Então essa propriedade de Acabe era um segundo palácio, uma espécie de residência de verão.
Certo dia Acabe pediu que Nabote lhe cedesse a sua vinha, já que ela estava ao lado de sua casa em Jezreel. Inclusive o rei Acabe tentou negociar a compra da vinha, prometendo dar a Nabote outra vinha melhor, ou pagar-lhe em dinheiro o que lhe fosse justo.
Nabote explicou para Acabe que não podia fazer um acordo com ele, porque sua vinha era herança de seus pais. O rei Acabe ficou muito desgosto e indignado por não ter conseguido ficar com a vinha de Nabote. Ele ficou tão abatido que nem queria se alimentar.
Foi então que Jezabel viu a situação de Acabe e lhe perguntou o motivo de sua tristeza. Acabe explicou que era porque sua proposta pela vinha de Nabote havia sido recusada. Mas Jezabel pediu que ele se alegrasse, pois ela lhe daria a vinha que ele tanto desejava.

Um plano perverso para tomar a vinha de Nabote

Tão logo Jezabel pôs em prática seu plano maligno para conseguir obter a vinha de Nabote. Ela escreveu cartas em nome de Acabe e enviou aos anciãos e aos nobres da região. A carta que havia sido selada com o sinete real convocava um jejum e ordenava que Nabote fosse trazido à frente do povo.
Com isso Jezabel estava provocando grande apreensão entre os habitantes de Jezreel. Isso porque ao convocar um jejum, ela estava indicando ao povo que todos estavam diante de uma crise iminente causada por uma grande transgressão (cf. Juízes 20:26; 1 Samuel 7:5-6; 2 Crônicas 20:3; Jonas 3:5-9).
Então Jezabel também providenciou que dois homens maus testemunhassem falsamente contra Nabote. A Lei Mosaica determinava que uma acusação precisava ser sustentada por pelo menos duas testemunhas. Os dois homens acusaram Nabote de blasfemar contra Deus e contra o rei. A pena para quem amaldiçoasse a Deus era a morte por apedrejamento (cf. Êxodo 22:28; Levítico 24:10-16).
E foi assim que aconteceu. Após ter sido acusado falsamente, Nabote foi levado para fora da cidade e foi apedrejado até a morte (1 Reis 21:13). Além disso, os filhos de Nabote também foram mortos, garantindo que não houvesse mais nenhum herdeiro da vinha vivo (2 Reis 9:26).
Quando Jezabel recebeu a notícia de que Nabote já estava morto, logo ela foi avisar a Acabe que a vinha de Nabote agora poderia ser tomada. Então rapidamente o rei de Israel se levantou e foi tomar posse da vinha (1 Reis 21:15,16).

Elias denuncia o crime envolvendo a vinha de Nabote

O escritor bíblico diz que naquele contexto veio a palavra do Senhor ao profeta Elias. Deus ordenou que o profeta fosse se encontrar com Acabe e denunciasse o seu pecado. Através do profeta, Deus anunciou que no mesmo lugar em que os cães lamberam o sangue de Nabote, também lamberiam o sangue de Acabe; bem como Jezabel também seria devorada por cães dentro dos muros de Jezreel.
Deus ainda prometeu acabar com a linhagem de Acabe. Deus falou que o mesmo que aconteceu com a casa de Jeroboão, haveria de acontecer com a casa de Acabe. Quem morresse na cidade seria comido por cães; e quem morresse no campo seria comido pelas aves do céu (1 Reis 21:22; cf. 14:11).
Diante das palavras de juízo divino trazidas por Elias, Acabe mudou de atitude. Ele ficou apavorado, rasgou suas vestes e cobriu-se de pano de saco. No Antigo Testamento esse comportamento era característico de profunda humilhação, lamentação e arrependimento (Gênesis 37:34; 2 Samuel 3:31; 2 Reis 6:30; Lamentações 2:10; Joel 1:13).
Então de forma misericordiosa Deus olhou para a humilhação de Acabe. Por isso Ele resolveu adiar por uma geração o seu juízo sobre a casa de Acabe. Isso significa que o rei não viveria para ver o fim de sua dinastia em Israel. Isso haveria de acontecer nos dias de seu filho Jorão, que morreu no campo que havia pertencido a Nabote. Apesar disso, a sentença de uma morte desonrosa tanto para Acabe quanto para Jezabel foi cumprida (1 Reis 22:37,38; 2 Reis 9:10,34-37).

Por que a vinha de Nabote não podia ser vendida?

Nos povos cananeus, vizinhos dos israelitas, um rei podia confiscar qualquer terra de seu reino. Isso porque nessas nações pagãs todo o território pertencia à família real e era apenas confiado aos súditos.
Mas em Israel isso era completamente diferente. Deus era reconhecido como o verdadeiro proprietário de toda terra. Os israelitas eram vistos como mordomos que simplesmente administravam aquilo que graciosamente tinham recebido de Deus (cf. Êxodo 19:3-8; Levítico 25:23; Números 14:8; 35:34; Deuteronômio 1:8).
Isso também explica a reação de Nabote diante da proposta de Acabe por sua vinha. Ele disse: “Guarda-me o Senhor de que eu dê a herança de meus pais” (1 Reis 21:3). Quando o território da Terra Prometida foi conquistado pelos israelitas, ele foi dividido e distribuído por cada família. Então a posse de cada parte daquele território havia sido dada por Deus como custódia às famílias de Israel.
Os israelitas eram proibidos de negociar e entregar de modo permanente a titularidade de terras familiares. Isso significa que a vinha de Nabote era uma herança sagrada que o Senhor havia dado à sua família. Se Nabote aceitasse vender sua vinha, automaticamente ele acabaria por deserdar seus próprios descendentes (Levítico 25:23; Números 27:1-11; 36:1-12).
Então se a vinha de Nabote fosse vendida, configuraria descumprimento da lei e seria algo desagradável aos olhos do Senhor. Mas por lealdade a Deus, Nabote prontamente recusou a oferta de Acabe por sua vinha, ainda que fosse uma proposta muito vantajosa.

A vinha de Nabote apenas revelou uma sequência de pecados

O episódio envolvendo a vinha de Nabote deixou muito claro que tipo de pessoa o rei Acabe era. Acabe era um homem vendido ao pecado. A palavra de Deus diz que “ninguém houve, pois, como Acabe; que se vendeu para fazer o que era mau perante o Senhor”. Ele era instigado por sua esposa Jezabel, e juntamente com ela abraçou a idolatria e fez grandes abominações em Israel (1 Reis 21:25,26).
W. W. Wiersbe diz que quando alguém se vende para o diabo, pode confundir o bem com o mal e a luz com a escuridão. Através do profeta Isaías Deus diz: “Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem mal; que fazem das trevas luz, e da luz trevas; e fazem do amargo doce, e do doce amargo” (Isaías 5:20).
Acabe caiu exatamente nesse erro. Consequentemente, instigado por sua esposa, ele transgrediu a Lei de Deus em todos os sentidos. Na história da vinha de Nabote, por exemplo, ao lado de Jezabel, Acabe não conseguiu controlar sua cobiça, encorajou o falso testemunho contra Nabote, foi cúmplice de seu assassinato e, por fim, roubou aquilo que não lhe pertencia.
Ao tomar posse da vinha de Nabote, Acabe não estava defraudando apenas a casa de Nabote, mas estava roubando as terras que originalmente pertenciam a Deus. Além disso, o modo como tudo foi feito indica que Acabe e Jezabel usaram a Lei de Deus de forma distorcida e aplicada a satisfazer seus desejos pecaminosos.
Nabote foi morto nos parâmetros da lei ao ser acusado de blasfêmia contra Deus. Mais tarde o mesmo tipo de falsa acusação foi lançado sobre Jesus Cristo e sobre o diácono Estêvão (Mateus 26:59-65; Atos 7). Tal como Acabe e Jezabel tomaram a vinha de Nabote, ainda hoje as pessoas continuam distorcendo a Palavra de Deus a seu bel prazer com a finalidade de satisfazer sua cobiça. Mas o dia do juízo de Deus se aproxima.

terça-feira, 15 de outubro de 2019

Dia dos professores - "Se é ensinar, haja dedicação ao ensino;" (Romanos 12:7)

   O apóstolo Paulo pressupõe em suas palavras que ensinar é uma atividade de grande responsabilidade e, portanto, aquele não tem este chamado não deve assumir o encargo. O professor, seja ela na escola secular, ou na escola bíblica tem um chamado ao exercício responsável, que deve ser realizado com esmero, e diante de si uma grande responsabilidade. A História mostra que os homens que fizeram a diferença na Humanidade tiveram a influência de seus professores, dentre eles estão também aqueles que massacraram o seu povo ou outros povos. É claro que nenhum professor tem como saber o resultado do ensino que ministra. Aos professores sempre foi atribuída uma grande responsabilidade e a necessidade de serem modelos em uma sociedade que tem perdido a sua base, a família. Mas se os professores, eles mesmos, não tiverem um modelo em quem se espelhar será difícil atender à exortação de Paulo. Vemos que as escolas têm se distanciado dos princípios bíblicos e aderido às ideias cada vez mais próximas da filosofia mundana. Se a família tem se esfacelado e seus filhos chegam à escola sem a base moral para que recebam uma educação de qualidade, também os professores têm sido formados sem uma referência como a que nos deixou o maior Mestre que pode nos servir de modelo: Jesus. O apóstolo Paulo em I Coríntios 11:1 ensina: “Sede meus imitadores, como também eu sou de Cristo”. Professores que têm Jesus como referência têm a base para enfrentar as dificuldades que os alunos de hoje trazem para a escola, pois diante de todos os tipos de alunos, o Mestre sempre foi atencioso e firme. A Bíblia mostra que Ele deu atenção ao jovem rico e à mulher samaritana; ao religioso judeu e ao simpatizante gentio; ao escrupuloso fariseu e ao desconfiado publicano. Isso não significava mudar de método, de teoria, ou de princípios. Jesus atendia a todos de forma personalizada com a metodologia infalível: o amor!

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Aliança Mosaica e Aliança Abraãmica e suas distinções

“Ora, o mediador não é de um, mas Deus é um” (Gl 3.20).
O versículo acima mostra o quanto um texto do NT, quando traduzido ao pé da letra, pode ser lacônico e vago. Trata-se, também, de um versículo que ilustra a importância do contexto como ferramenta crucial na compreensão de determinada passagem.
De fato, ao dizer simplesmente que “o mediador não é de um” e que Deus, porém, “é um”, Paulo não transmite uma ideia clara ou completa ao leitor atual e, caso alguém caia na tentação de buscar o significado dessas afirmações à parte do assunto tratado pelo apóstolo, o máximo a que talvez seja capaz de chegar abrangerá uma defesa do monoteísmo, frisando a parte final do versículo e dizendo que há um só Deus e nenhum outro.
Ao escrever Gálatas 3.20, porém, Paulo não se propôs a defender o monoteísmo como, numa leitura desatenta, pode parecer. O monoteísmo, obviamente, é verdadeiro e Paulo o ensina claramente em outros escritos (Ex.:1Co 8.5-6; 1Tm 2.5). Porém, não é esse o tema de que ele trata aqui e a simples observação do contexto deixa isso fora de dúvida.
A verdade é que, quando levado em conta o assunto de que Paulo trata nessa porção da Carta aos Gálatas (vejam-se os vv.15-19), fica evidente que, no v.20, o apóstolo está propondo um contraste entre a aliança promulgada ao tempo de Moisés (que envolvia a Lei) e o pacto de Deus firmado com Abraão.
Assim, quando Paulo afirma que “o mediador não é de um”, ele está se referindo a Moisés e à aliança que veio à luz por sua instrumentalidade. Nessa aliança, Moisés atuou como um “mediador”, o que evidenciava a bilateralidade (“não é de um”) do Pacto do Sinai. Sendo, pois, bilateral, a Aliança Mosaica comprometia ambas as partes (Deus e o povo), impondo sobre as duas tanto direitos como obrigações. Frise-se que, no pensamento de Paulo, a simples existência de um mediador era prova cabal de que a Aliança Mosaica era bilateral, comprometendo tanto Deus como os homens.
O versículo, porém, prossegue e Paulo apresenta o segundo elemento do contraste que quer estabelecer. Que esse contraste existe, fica evidente pelo uso que faz da conjunção δέ (mas). O apóstolo, assim, afirma: “Mas Deus é um”. Em outras palavras: se, de um lado, houve um pacto em que duas partes se obrigaram (a Aliança Mosaica); de outro, houve um pacto no qual somente um se obrigou, isto é, Deus. Com efeito, no Pacto Abraâmico “Deus é um”, isto é, figura como a única parte que se comprometeu, fixando, dessa forma, uma aliança unilateral.
Observe-se, portanto, que o sentido da frase “Deus é um” (que, a princípio, parece tão desconectada do assunto), pode ser claramente detectado à luz do ambiente textual em que ela se encontra. Esse ambiente mostra que a expressão “mas Deus é um” se relaciona com o pacto de Deus com Abraão (vv.16,19), sendo, a partir desse aspecto presente no texto, que a frase em pauta deve ser entendida.
Resumindo: em Gálatas 3.20, Paulo ensina que, diferente da Aliança Mosaica, a Aliança Abraâmica envolveu somente um: Deus. Isso significa que, ao fazer suas promessas ao velho patriarca, somente Javé se comprometeu, o que, aliás, pode ser facilmente observado no fato de somente ele ter passado entre os pedaços de animais que foram mortos para formalizar aquela aliança (Gn 15.17).
Qual é a relevância desse ensino? Muito simples: Paulo destaca que as bênçãos da promessa estão ligadas à Aliança Abraâmica e não à Aliança Mosaica (v.16-17). E a Aliança Abraâmica, diferente da Mosaica, é unilateral, não impondo norma nenhuma ao homem. Consequentemente, para participar das bênçãos da Aliança Abraâmica, não é preciso observar regra alguma (como os galateus estavam fazendo), mas somente crer (como Abraão fez — vejam-se os vv.22,24).
Infelizmente, muitos evangélicos de hoje acreditam que a herança da promessa está conectada à Aliança Mosaica e vivem cumprindo regras (até mesmo não bíblicas) para alcançá-la. Quão felizes seriam, porém, se descobrissem o verdadeiro evangelho e, finalmente, aprendessem que a herança de Deus se conecta ao Pacto Abraâmico — um pacto unilateral, livre de preceitos e normas; enfim, um pacto que beneficia os que tão somente creem em Cristo, tornando-os, afinal, herdeiros do universo.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O Pecado para a Morte e a Blasfêmia contra o Espírito Santo -

   Não são poucos os pregadores de linha pentecostal que ameaçam os críticos das atuais "manifestações espirituais" de cometerem o pecado sem perdão, a blasfêmia contra o Espírito Santo. Mas, será? O pecado para a morte é mencionado por João em sua primeira carta:

"Há pecado para morte, e por esse não digo que rogue (5.16c)".

A morte a que João se refere é a morte espiritual eterna, a condenação final e irrevogável determinada por Deus, tendo como castigo o sofrimento eterno no inferno. Todos os demais pecados podem ser perdoados, mas o “pecado para morte” acarreta de forma inexorável a condenação eterna de quem o comete, a ponto do apóstolo dizer: "e por esse não digo que rogue". E o apóstolo continua:

"Toda injustiça é pecado, e há pecado não para a morte (5.17; cf. 3.4)".

João não está sugerindo que a distinção entre pecado mortal e pecado não mortal implique na existência de pecados que não sejam tão graves assim.Todo pecado é contra o Deus justo, contra a sua justiça. Portanto, todo pecado traz a morte, que é a penalidade imposta por Deus contra o pecado. Mas, para que seus leitores não fiquem aterrorizados, João repete: há pecado não para morte (5.17b). Nem todo pecado é o pecado mortal. Há perdão e vida para os que não pecam para a morte. O Senhor mesmo convida seu povo a buscar o perdão que ele concede (Is 1.18).

O que, então, é o pecado para a morte? O apóstolo João não declara explicitamente a que tipo de pecado se refere. Através dos séculos, estudiosos cristãos têm procurado responder a esta pergunta. Alguns têm entendido que João se refere à morte física, e têm sugerido que se trata de pecados que eram punidos com a pena de morte conforme está no Antigo Testamento (Lv 20.1-27; Nm 18.22). Não adiantaria orar pelos que cometeram pecados punidos com a morte, pois seriam executados de qualquer forma pela autoridade civil. Ou então, trata-se de pecados que o próprio Deus puniria com a morte aqui neste mundo, como ele fez com os filhos de Eli (2Sm 2.25), com Ananias e Safira (At 5.1-11) e com alguns membros da igreja de Corinto que profanavam a Ceia (1Co 11.30; cf. Rm 1.32).

A Igreja Católica fez uma classificação de pecados veniais e pecados mortais, incluindo nos últimos os famosos sete pecados capitais, como assassinato, adultério, glutonaria, mentira, blasfêmia, idolatria, entre outros. Este tipo de classificação é totalmente arbitrário e não tem apoio nas Escrituras.

A interpretação que nos parece mais correta é que João está se referindo à APOSTASIA, que no contexto de seus leitores, significaria abandonar a doutrina apostólica que tinham ouvido e recebido e seguir o ensinamento dos falsos mestres, que negava a encarnação e a divindade do Senhor Jesus. “Pode-se inferir do contexto que este pecado não é uma queda parcial ou a transgressão de um determinado mandamento, mas APOSTASIA, pela qual as pessoas se alienam completamente de Deus” (Calvino).

Trata-se, portanto, de um pecado DOUTRINÁRIO, cometido de forma VOLUNTÁRIA e CONSCIENTE, similar ao pecado de blasfêmia contra o Espírito Santo, cometido pelos fariseus, e que o Senhor Jesus declarou que não haveria de ter perdão nem aqui nem no mundo vindouro (cf. Mt 12.32; Mc 3.29; Lc 12.10). Em ambos os casos, há uma rejeição consciente e voluntária da verdade que foi claramente exposta.

No caso dos leitores de João, a apostasia seria mais profunda, pois teriam participado das igrejas cristãs, como se fossem cristãos, participado das ordenanças do batismo e da Ceia, participado dos meios de graça. À semelhança dos falsos mestres que também, antes, tinham sido membros das igrejas, apostatar seria sair delas (2.19), e se juntar aos pregadores gnósticos e abraçar a doutrina deles, que consistia numa negação de Cristo.

Tal pecado era “para a morte” por sua própria natureza, que é a rejeição final e decidida daquele único que pode salvar, Jesus Cristo. “Este pecado leva quem o comete inexoravelmente a um estado de incorrigível embotamento moral e espiritual, porque pecou voluntariamente contra a própria consciência” (J. Stott).

É provavelmente sobre pessoas que apostataram desta forma que o autor de Hebreus escreveu, dizendo que “é impossível outra vez renová-los para arrependimento, visto que, de novo, estão crucificando para si mesmos o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia” (Hb 6.4-6). Ele descreve essa situação como sendo um viver deliberado no pecado após o recebimento do pleno conhecimento da verdade. Neste caso, “já não resta sacrifício pelos pecados; pelo contrário, certa expectação horrível de juízo e fogo vingador prestes a consumir os adversários” (Hb 10.26-27). Este pecado é descrito como calcar aos pés o Filho de Deus, profanar o sangue da aliança com que foi santificado e ultrajar o Espírito da graça (Hb 10.29), uma linguagem que claramente aponta para a blasfêmia contra o Espírito e a negação de Jesus como Senhor e Cristo (ver também 2Pd 2.20-22, onde o apóstolo Pedro se refere aos falsos mestres).

Não é sem razão que o apóstolo João desaconselha pedirmos por quem pecou dessa forma.

Alguém pode perguntar se Deus fecharia a porta do perdão se pessoas que pecaram para a morte se arrependessem. Tais pessoas, porém, não poderão se arrepender. Elas não o desejam. E além disto, o Senhor determinou sua condenação, a ponto de João não aconselhar que oremos por elas. “Tais pessoas foram entregues a um estado mental reprovável, estão destituída do Espírito Santo, e não podem fazer outra coisa senão, com suas mentes obstinadas, se tornarem piores e piores, acrescentando mais pecado ao seu pecado” (Calvino).

Notemos que nestes versículos João não chama de “irmão” aquele que peca para a morte. Apenas declara que há pecado para a morte e que não recomenda orar pelos que o cometem. É evidente que os nascidos de Deus jamais poderão cometer este pecado.

Portanto, não se impressione com as ameaças de pastores do tipo "você está blasfemando contra o Espírito Santo" se o que você estiver fazendo é simplesmente perguntando qual a base bíblica para cair no Espírito, rir no Espírito, a unção da leoa, e outras "manifestações" atribuídas ao Espírito Santo.

sábado, 31 de agosto de 2019

Reads the poem "The children" - John Piper

   Do you hear the children crying?  I can hear them every day, crying, sighing, dying, flying, somewhere safe from all dangers, somewhere safe from crack and AIDS, insurance from lust and strangers lurking, insurance from war and bombing.  Somewhere safe from malnutrition, Safe from daddy's damning voice, Safe from mommy's cold ambition, Safe from mortal goddess, choose.  Do you hear the children crying?  I can hear them every day, crying, sighing, dying, flying, somewhere safe where they can play.  Do you see the children meeting?  I can see them in heaven, meeting, sitting, eating, greeting Jesus with the answer to why.  Why milk no longer nourishes, why water makes them sick, why crops no longer bloom, why the belly gets so thick.  Why they never knew why their friends disappeared from view, why some suffered for a season, others never saw the light.  Do you see the children meeting?  I can see them in heaven, meeting, sitting, eating, greeting Jesus with the answer to why.  Do you hear the children singing?  I can hear them up there Singing, jumping, playing, bringing glory to the God of love.  Glory for the gift of life, glory for the end of pain, glory for the gift of giving, glory for eternal gain.  Glory of the abandoned, glory of the lost and lonely.  Glory when babies wake up, orphans on their father's throne.  Do you hear the children singing?  I can hear them up there, singing, jumping, playing, bringing glory to the God of love.  Do you see the kids coming?  I can see them in the clouds, coming in, playing, playing drums, humming with the happy crowd of the sky.  Songs with lots of happy clapping, songs that catch fire in the heart, songs that make your foot start playing, songs that make a happy choir.  Songs so high that the mountains tremble, songs so pure that the canyons play, when all the children gather Millions, Millions, around the King. Do you see the children coming?  I can see them in the clouds, coming in, playing, playing drums, humming with the happy crowd of the sky.  Do you see the children waiting?  I can see them all shining, waiting, waiting, waiting, waiting, who of us will rise and leave?  Shall we turn and fly to find them?  Shall we venture into something new?  I intend to get up and greet them.  Come and go with me, yes?

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Recasamento, é BÍBLICO???

   Vivemos dias em que os valores cristãos ditam cada vez menos as normas da sociedade e o padrão de conduta do ser humano, ao passo que os valores da sociedade influenciam o estilo de vida até mesmo dentro da Igreja do Senhor. Isso tem trazido efeitos tristes e consequências amargas.
Vários aspectos da conduta cristã são atacados pelo sistema mundano, mas nossa intenção é isolar apenas um deles: o recasamento. Por recasamento entendese a união matrimonial subsequente a um processo de divórcio. Significa que uma pessoa que era casada e se separou de seu cônjuge pelas vias legais, oficializa pelas mesmas vias um segundo casamento, ou terceiro e assim por diante.
Sabemos ser este um procedimento muito comum na atualidade e bem recebido pela sociedade moderna. Mas o que dizer da igreja? Como a igreja deve olhar para esse fenômeno? O que a Bíblia diz a respeito?
Para responder essas questões vamos propor três perguntas:
1. A Bíblia aprova ou permite o recasamento?
2. O que acontece com pessoas que se casam novamente?
3. Como a igreja deve tratar crentes recasados?

1. A BÍBLIA APROVA OU PERMITE O RECASAMENTO?
As Escrituras demonstram que o casamento entre um homem e uma mulher é uma instituição cujo autor é Deus (Gn 2.24). Dessa união o Senhor pretendeu que a multiplicação da raça humana e o povoamento da terra fossem levados a efeito (Gn 1.28; 9.1).
Essa união é boa para o homem (Gn 2.18) e forma um laço indissolúvel que perdura até a morte de um dos cônjuges (Mt 19.6; Rm 7.2; 1Co 7.39). Levando em conta a natureza humana e suas inclinações, o casamento impede que homem e mulher tenham vidas imorais (1Co 7.2,28). A Bíblia diz que a união de um homem e uma mulher no casamento os torna “uma só carne” (Gn 2.24; Mt 19.5,6; Mc 10.8; Ef 5.31). As Escrituras também ensinam que essa união deve ser mantida pura por meio da fidelidade conjugal, ficando terminantemente proibido o adultério (Ml 2.15,16; Hb 13.4).
Diante dessas observações uma pergunta muito freqüente é: “Será que a Bíblia permite um novo casamento?” Há duas respostas condicionadas a situações diferentes:
1) Caso o cônjuge já tenha falecido, a resposta é “sim” (Mt 22.24; Rm 7.2,3). Em alguns casos esse novo casamento após a morte do cônjuge é aconselhado (1Tm 5.14,15). Entretanto, tal união deve ser realizada com alguém também salvo por Cristo (1Co 7.39).
2) Caso o cônjuge esteja vivo, apesar de separado, a resposta é um sonoro “não” (Mt 5.32; Mc 10.11,12; Lc 16.18; Rm 7.3; 1Co 7.1011). Excepcionalmente algumas exceções são abertas para casos de divórcio (Mt 5.32; 1Co 7.15), mas nenhuma exceção há para o recasamento quando o cônjuge ainda vive. Há quem defenda que casamentos entre não crentes não são de fato válidos por não serem realizados “no Senhor”. Entretanto, a ordem de Deus para que o crente casado com o incrédulo não se aparte dele (1Co 7.1215), demonstra que a união matrimonial se dá não pelo fato dos cônjuges serem crentes ou pelo fato de terem realizado uma cerimônia em uma Igreja do Senhor, mas pelo fato de se unirem na instituição que Deus criou para a humanidade: o casamento. Assim, crentes ou não crentes que se casam estão, de fato, unidos pelo matrimônio reconhecido por Deus e “não podem se casar novamente, a menos que o cônjuge venha a falecer.”
2. O QUE ACONTECE COM PESSOAS QUE SE CASAM NOVAMENTE?
Esta é uma pergunta bastante pertinente porque a mera e clara proibição bíblica ao recasamento não tem impedido que pessoas divorciadas, mesmo dentro das igrejas, venham a se casar novamente. A pergunta a ser respondida nesse caso é: “Será que esse segundo casamento realmente existe?” Em outras palavras: “Será que a Bíblia dá mostras de que o segundo casamento também une um homem e uma mulher em um laço indissolúvel?”
A resposta éa Bíblia censura o recasamento, mas reconhece sua existência e a união entre homem e mulher. O recasamento, à luz das Escrituras, é “irregular”, porém “válido”. Para entendermos os termos, irregular significa: “contrário ao ensino bíblico”; válido significa: “longe de ser algo aprovado pela Bíblia, é reconhecido por ela como “existente”. Em outras palavras, o recasamento é moralmente errado, mas mesmo assim é um casamento.
As objeções mais comuns a esse ponto de vista são que o casamento só une o homem a uma única mulher e que o fenômeno de fazer homem e mulher “uma só carne” só ocorre uma única vez. Entretanto, as Escrituras demonstram o contrário:
a) A Bíblia reconhece a existência de mais de um casamento simultâneo.
b) A Bíblia faz distinção entre o casamento e a convivência carnal.
c) A Bíblia reconhece que a formação de “uma só carne” pode ocorrer mais de uma vez.
a) A Bíblia reconhece a existência de mais de um casamento simultâneo.
O primeiro caso relatado na Bíblia de uma poligamia foi o de Lameque (Gn 4.19). Apesar de não ser este o propósito central do texto, ele apresenta as duas mulheres de Lameque, Ada e Zilá, desfrutando da mesma condição em relação ao marido.
Davi recebeu Mical por mulher (1Sm 18.27; 2Sm 3.14). Apesar disso, Davi recebeu por mulheres Abgail (1Sm 25.42) e Ainoã (1Sm 25.43) no tempo em que fugia de Saul. O texto claramente diz que “ambas foram suas mulheres”. Quando Davi se assentou no trono de Judá, em Hebrom, ele se casou e teve filhos com Maaca, com Hagite, com Abital e com Eglá (2Sm 3.25). Nem todas dentre essas quatro mulheres são descritas claramente como esposas, a não ser Eglá. Mesmo assim, o fato de Maaca, a primeira da lista, ser descrita como filha de um rei torna extremamente improvável que ela fosse uma concubina e que Davi não tivesse oficializado com ela um casamento, provavelmente por questões políticas.
Deste modo, a lista das quatro mulheres começa e termina com duas esposas (Maaca e Eglá), tornando provável que as outras duas também fossem oficialmente esposas de Davi (Hagite e Abital). Assim que Davi unificou o trono e reinou em Jerusalém sobre todo o Israel, se casou ainda com outras mulheres (2Sm 5.13; 1Cr 14.3). Posteriormente Davi se casou com BateSeba (2Sm 11.27).
Salomão teve muitas esposas. Talvez a mais distinta fosse a filha do Faraó (1Rs 3.1). Apesar desse casamento, Salomão amou e teve 700 esposas “além da filha do Faraó”, desobedecendo a ordem de “não se casar” com mulheres estrangeiras (1Rs 11.13), nem acrescentar mulheres para si (Dt 17.17). O resultado foi que “suas mulheres lhe perverteram o coração” (1Rs 11.4).
Roboão, filho de Salomão, não seguiu o exemplo de seu pai acumulando um número tão exagerado de mulheres. Mesmo assim, ele teve 18 esposas das quais Maaca era a mais amada (2Cr 11.21).
O Novo Testamento também contém exemplos de poligamia. Um caso claro é o da mulher samaritana. O próprio Senhor Jesus nos informa que ela tivera cinco maridos (Jo 4.18). Há quem defenda a possibilidade de que a mulher tivesse ficado viúva cinco vezes não cometendo qualquer erro. A possibilidade é real, mas o tom de denúncia de Jesus não condiz com isso. Antes, Jesus expõe a vida desregrada da mulher samaritana apresentando junto um convite à fé. Há também quem proponha que Jesus não se referiu a cinco “maridos”, mas a cinco “homens”, que nada mais seriam que amantes ou conviventes, baseado na palavra grega usada para descrevêlos (andros). Porém, esta é a mesma palavra usada no Novo Testamento para dizer que José era “marido” de Maria (Mt 1.16), para proibir que a mulher se case novamente enquanto o “marido” ainda vive (Rm 7.3), para aconselhar o “casamento” a fim de impedir a impureza (1Co 7.2), para ordenar aos “cônjuges” que cumpram suas responsabilidades conjugais (1Co 7.3,4) e para ordenar às esposas que sejam submissas aos seus “maridos” (Ef 5.22). Portanto, Jesus afirmou, de fato, que a mulher teve cinco maridos e que aquele com quem vivia atualmente não era “marido”, ou seja, não tinha se casado formalmente com ela. Caso fosse aceito que a samaritana teve cinco “homens” que não eram seus maridos, a interpretação das palavras de Jesus seria ilógica. Significaria algo como: “Cinco homens já tiveste, e esse que agora tens não é homem”, ou “cinco homens já tiveste, e esse homem que agora tens, não o tens”. Essas interpretações distantes da razão mostram que Jesus afirmou e reconheceu que a mulher samaritana teve, de fato, cinco maridos, possivelmente enquanto alguns deles ou todos ainda viviam, motivo pelo qual Jesus usa com ela um tom de reprovação.
   Mesmo na igreja havia homens casados com mais de uma esposa. A poligamia era comum no mundo antigo e muitos dos que se convertiam eram casados com mais de uma mulher ou tinham se divorciado e se casado novamente. Por isso Paulo demonstra cautela em relação aos cargos de liderança e ordena a Timóteo que tanto pastores quanto diáconos fossem “maridos de uma só esposa” (1Tm 3.2,12). A Tito o apóstolo escreve o mesmo (Tt 1.5,6). Quando notamos as qualificações dadas por Paulo para a escolha de pastores e diáconos, percebemos que não há nenhum critério óbvio para um crente como o de “ter fé em Cristo”. Todos os itens apontam para qualidades que realmente poderiam excluir candidatos crentes aos cargos de liderança. Havia crentes que, em uma ou outra área, não se apresentavam aptos para o cargo. Havia crentes irascíveis (Cl 3.8), dados a muito vinho (1Co 11.21), não modestos (Tg 4.16) e não inimigos de contendas (Gl 5.15). Do mesmo modo, havia os que não eram “maridos de uma só esposa”. Esses homens não podiam assumir cargos de liderança por causa do seu recasamento.
À luz dessa evidência não é possível rejeitar o fato de que a Bíblia, conquanto condene o recasamento, reconhece sua existência e vê nos casamentos subseqüentes ao primeiro as mesmas prerrogativas de união entre um homem e uma mulher que perfazem um matrimônio.
b) A Bíblia faz distinção entre o casamento e a convivência carnal.
É comum que, diante do reconhecimento bíblico da existência de casamentos simultâneos, se proponha que tais casos não apontam para casamentos no seu real sentido, mas para concubinatos corriqueiramente descritos como casamentos. Segundo essa proposta, quando a Bíblia diz que certo homem tomou “outras mulheres”, deveria ser interpretado que tal homem tomou “outras concubinas”. Somente a primeira mulher desfrutaria da posição de esposa.
A Bíblia não parece tratar dessa forma. Davi possuía “esposas” e “concubinas” (2Sm 5.13; 19.5). Salomão tinha setecentas “esposas” e trezentas “concubinas” (1Rs 11.3). Roboão possuía dezoito “mulheres” e sessenta “concubinas” (2Cr 11.21). Em todos esses relatos, as concubinas são contrapostas não a uma esposa, mas a várias delas, demonstrando que a diferença entre o casamento e o concubinato não estava na divisão entre a primeira mulher e as demais, mas entre aquelas que foram unidas ao marido pelo casamento e aquelas que experimentaram apenas a união carnal.
Portanto, voltando à pergunta: “O que acontece com pessoas que se casam novamente?”, a resposta é que elas se unem em um novo laço matrimonial também indissolúvel como o primeiro. Esse novo vínculo não é permitido pelas Escrituras, mas é existente quando ocorre. É “irregular”, mas “válido.”
c) A Bíblia reconhece que a formação de “uma só carne” pode ocorrer mais de uma vez.
Uma objeção comum à existência de laços matrimoniais no recasamento é a ordem de Deus ao homem para que se una à mulher “tornandose os dois uma só carne” (Gn 2.24). Esse ensino é repetido várias vezes nas Escrituras (Mt 19.5,6; Mc 10.7,8; Ef 5.31). Porém, Paulo alerta os coríntios quanto à imoralidade sexual e diz que “o homem que se une à prostituta forma um só corpo com ela...” (1Co 6.16). Quando Paulo dá esse alerta, ele não o faz somente aos solteiros, mas a toda a igreja. Mesmo os homens casados, ao se unirem a uma prostituta, formavam um só corpo com ela.
Algo passível de confusão é o fato de Paulo usar a palavra “corpo” (soma) em lugar da palavra “carne” (σάρξ, sarx) para descrever tal união. Contudo, imediatamente explica o motivo do erro de se unir a uma prostituta, dizendo: “... Porque, como se diz, serão os dois uma só carne”. Ao escrever a expressão “um só corpo” Paulo tinha em mente a união descrita por Deus que também ocorre no casamento. O motivo de ter usado a palavra corpo em vez de carne se deve ao fato de Paulo discorrer no parágrafo em questão sobre o uso do corpo pelos crentes (1Co 6.13,15,1820). É por isso que, em contraposição à união “corporal” entre o homem e a prostituta, o apóstolo apresenta a união “espiritual” entre o crente e o Senhor (1Co 6.17).
Assim, a Bíblia reconhece a possibilidade de uma pessoa se unir em uma condição descrita como “uma só carne” com mais de uma pessoa. Isso também revela que o termo “uma só carne” não é sinônimo exato de casamento e que para haver união matrimonial deve existir mais que união carnal, necessitando da devida formalização do vínculo.
3. COMO A IGREJA DEVE TRATAR CRENTES RECASADOS?
Como a igreja não está imune a exemplos de recasamento, é necessário que se posicione diante da questão. Para isso, deve ficar claro que o fato de definir pelas Escrituras o modo de lidar com pessoas recasadas na igreja de modo algum deve nublar o ensino da proibição do recasamento por Deus. É, antes, a manutenção em graça da vida daqueles que desobedeceram tal ordem e se colocaram em uma situação irregular, porém irreversível.
Há dois casos que, apesar de fundamentalmente iguais, guardam algumas distinções. Um é o caso de pessoas já recasadas quando se converteram a Cristo. Outro é caso de crentes que, desobedecendo a Bíblia e a orientação dos seus líderes, se casaram novamente, sendo, por esta obstinação, disciplinados pela igreja. Apesar das diferenças, ambos os casos têm o mesmo efeito sobre a vida do indivíduo e necessitam da mesma solução: O arrependimento do pecador e o perdão de Deus.
Uma condição muitas vezes imposta ao crente recasado é que ele demonstre seu arrependimento desfazendo o que foi gerado pelo pecado. Para tanto, o perdão e o ingresso na igreja se daria apenas mediante o divórcio do segundo casamento, podendo ou não haver reconciliação com o primeiro cônjuge. O argumento geralmente usado para apoiar essa visão é que um crente arrependido por furtar algo, demonstra a veracidade do seu arrependimento ao restituir o produto do furto. Isso é verdade. Entretanto, é uma regra que não pode ser aplicada a todos os casos. É possível que alguém furte algo que não possa restituir, ou causar danos que não podem ser desfeitos. Alguém que deva um valor superior às possibilidades de uma quitação mesmo ao longo de muito tempo, nunca poderá demonstrar o verdadeiro arrependimento por meio do ato de desfazer o que foi gerado pelo pecado. É o caso do credor que devia ao rei uma soma espetacular até para reinos vassalos (Mt 18.24). A anulação da dívida não se deu mediante o pagamento, visto ser inalcançável, mas mediante a graça do rei (Mt 18.27), assim como faz Deus em relação aos nossos pecados. Do mesmo modo, uma jovem solteira que fique grávida não pode desfazer o que foi gerado pelo pecado interrompendo a gravidez, nem o culpado pela morte de um inocente trazêlo de volta à vida a fim de provar que está de fato arrependido. Nesses tristes casos o arrependimento em si tem que bastar.
Esses exemplos se assemelham ao recasamento. Ele, ao ser reconhecido nas Escrituras como “existente”, se torna irreversível e cria uma união que só será desfeita na morte de um dos cônjuges (Rm 7.2). Com os cônjuges vivos não é possível desfazer a união entre eles sem que haja um divórcio, o qual Deus odeia (Ml 2.16). Não há justiça em reparar um pecado com outro.
Também não se deve aconselhar o recasado a reatar os laços com seu primeiro cônjuge. Essa prática é descrita em Deuteronômio como uma “abominação perante o Senhor” (Dt 24.14). É possível que alguém diga que tal proibição é fruto da Lei abolida pelo sacerdócio de Cristo (Hb 7.12). Mas a forma em que ela é exposta não encoraja a interpretação de que ela esteja baseada em algo como um código civil ou cerimonial, em lugar do caráter santo de Deus que independe do sacerdócio em vigor. Exemplos semelhantes a esse são as proibições quanto à união de uma pessoa com seu pai, ou mãe, ou irmão, ou irmã, ou neto, ou neta, ou tio, ou tia, ou genro, ou nora, ou duas mulheres que sejam mãe e filha, ou mulher do próximo, ou mais de uma mulher, ou ter relacionamento  homossexual ou bestial (Lv 18.123). O Senhor declara que tais coisas contaminam não apenas a nação israelita, mas todos os povos (Lv 18.24,30). Do mesmo modo que tais proibições advêm do caráter santo de Deus e não foram deixadas de lado após o ministério de Cristo, também a reconciliação de uma pessoa recasada com seu primeiro cônjuge deve, pelo mesmo motivo, ser rejeitada pela igreja.
Assim, crentes recasados devem se arrepender do seu pecado, não devem se divorciar e devem preservar um relacionamento de fidelidade com seu cônjuge atual. Quanto à igreja, esta deve perdoar o pecado do irmão arrependido (Lc 17.3), sabendo que Cristo fez o mesmo (1Jo 1.9), e deve introduzilo ou reintroduzilo na comunhão dos irmãos (2Co 2.58). Entretanto, tais indivíduos não poderão exercer atividades ministeriais (1Tm 3.2,12; Tt 1.5,6).
Esse posicionamento não deve ser encarado nem pelos crentes, nem pela liderança das igrejas como uma abertura para o pecado ou como uma brecha à qual os desobedientes podem recorrer. O modo como a Bíblia lida com possibilidade do abuso da liberdade cristã e do perdão gracioso de Deus não é uma forma legalista ou penal. A Bíblia, ao tratar da liberdade e do perdão, expõe a santidade de Deus, a nova natureza do cristão e o desencorajamento de uma vida contrária à condição do remido (Rm 6.1,2; Gl 5.13).
CONCLUSÃO
O melhor modo de concluir as considerações presentes a respeito do recasamento em face dos ensinos bíblicos é responder novamente, de forma sucinta, as três questões levantadas no início:
1. A Bíblia aprova ou permite o recasamento?
De modo algum, em lugar nenhum, sob nenhuma circunstância.
2. O que acontece com pessoas que se casam novamente?
Elas realmente se casam, apesar da irregularidade do ato. Devem se arrepender do pecado, mas não devem nem podem se divorciar, nem tampouco reatar o relacionamento anterior. Devem ser fiéis ao cônjuge atual até que a morte desfaça esse laço. Devem também buscar o perdão e a comunhão sincera com Deus e com a Igreja.
3. Como a igreja deve tratar crentes recasados?
A igreja deve perdoar o arrependido, conquanto ouça dele o pedido de perdão e constate nele a ausência de rebeldia na sua vida em geral. O irmão recasado arrependido deve ser integrado na vida e na comunhão da igreja, sendolhe impostas as devidas restrições ministeriais. Os pastores e professores devem alertar a igreja, diante disso, das consequências do pecado a fim de que haja temor entre os irmãos e consciência da necessidade de uma vida santa por parte dos remidos.