segunda-feira, 27 de maio de 2019

A História da Confissão de fé de Westminster




A Confissão de Fé de Westminster é a principal declaração doutrinária adotada oficialmente pela Igreja Presbiteriana do Brasil. Ela foi um dos documentos aprovados pela Assembléia de Westminster (1643-1649), convocada pelo Parlamento inglês para elaborar novos padrões doutrinários, litúrgicos e administrativos para a Igreja da Inglaterra. Para se entender as circunstâncias da formulação desse importante documento, é preciso relembrar a história da Reforma Inglesa.
1. Antecedentes
Até 1534, a Inglaterra havia sido católica romana por muitos séculos. Nesse ano, sob a liderança do rei Henrique VIII, essa nação rompeu com Roma e aprovou o Ato de Supremacia, pelo qual o rei passou a ser o chefe da Igreja da Inglaterra. Assim sendo, passou a existir uma igreja nacional inglesa, separada de Roma, mas ainda católica, com o nome de Igreja Anglicana.
Com a morte de Henrique VIII em 1547, subiu ao trono o seu filho adolescente Eduardo VI. Sob a liderança de Thomas Cranmer, arcebispo de Cantuária, foram elaborados dois importantes documentos, ambos influenciados pela teologia calvinista: os Trinta e Nove Artigos e o Livro de Oração Comum. Várias outras reformas foram realizadas, tendo-se a impressão de que a fé protestante iria triunfar. Todavia, a morte prematura do jovem rei, em 1553, interrompeu bruscamente esse processo.
Eduardo foi sucedido por sua meia-irmã, Maria Tudor, mais tarde conhecida como “Maria, a Sanguinária”. Ela era filha de Henrique VIII e da princesa católica espanhola Catarina de Aragão. De imediato, Maria se dispôs a anular o que seu pai e seu irmão haviam feito e levar a Inglaterra de volta para a Igreja de Roma. O arcebispo Cranmer e muitos outros líderes da Reforma foram queimados na fogueira.
Muitos protestantes fugiram para o continente, sendo que um bom número deles se refugiou em Genebra, onde o reformador João Calvino estava no auge da sua influência. Eles organizaram uma igreja presbiteriana, tendo como pastor um dos refugiados, o escocês João Knox. Outro refugiado, Miles Coverdale, e alguns companheiros fizeram uma nova tradução das Escrituras, que ficou conhecida como a Bíblia de Genebra. Foi a primeira Bíblia de tamanho pequeno a ser publicada e a primeira Bíblia em inglês na qual os livros eram divididos em capítulos e versículos.
Com a morte de Maria em 1558, sua meia-irmã Elizabete subiu ao trono para um longo reinado de 45 anos. O Ato de Supremacia foi restabelecido e os protestantes exilados tiveram permissão para retornar. Eles voltaram para a Inglaterra e a Escócia com a sua Bíblia de Genebra e com maior convicção acerca do calvinismo e do presbiterianismo.
2. Os puritanos
Nesse contexto, solidificou-se um movimento cujas raízes mais remotas vinham desde o pré-reformador João Wyclif (século 14), passando pelo tradutor da Bíblia William Tyndale (†1536) e muitos outros líderes. Firmemente apegados às Escrituras e à teologia calvinista, esses protestantes começaram a insistir numa reforma genuína da igreja inglesa, com uma forma de governo, um sistema de doutrinas, um culto e uma vida mais puros, ou seja, mais bíblicos. Com isso, por volta de 1565 eles passaram a ser chamados de “puritanos”.
A rainha Elizabete alarmou-se com o crescimento do puritanismo e tudo fez para forçar os puritanos a se submeterem aos padrões religiosos vigentes. Todavia, o movimento continuou a crescer. Um autor diz que a Inglaterra nunca experimentou uma transformação moral tão grande como a que ocorreu entre o meio do reinado de Elizabete e a convocação do Longo Parlamento. A Inglaterra se tornou o povo de um livro, a Bíblia, que era lida nas igrejas e nos lares, gerando grande vitalidade espiritual. (Ver John Richard Green, em Uma Breve História do Povo Inglês).
Com a morte de Elizabete em 1603, Tiago VI da Escócia, filho de Maria Stuart, tornou-se Tiago I, rei da Inglaterra e da Escócia, e chefe da igreja. Os puritanos nutriam grandes esperanças em relação ao novo rei, que havia sido educado pelos presbiterianos da Escócia. Todavia, ele os decepcionou profundamente, visto estar muito apegado ao sistema episcopal de governo eclesiástico. Ele disse: “Vou fazer com que se submetam ou os expulsarei do país, ou coisa pior”. No sei reinado, um grupo de puritanos foi inicialmente para a Holanda e depois para a Nova Inglaterra, na América do Norte. A única coisa positiva que esse rei fez na área religiosa foi aprovar uma nova e influente tradução da Bíblia, que ficou conhecida como a Versão do Rei Tiago (King James Version, 1611).
3. A Assembléia de Westminster
Tiago foi sucedido no trono por seu filho Carlos I, que reinou de 1625 a 1649. Seu principal conselheiro era William Laud, arcebispo de Cantuária, um adepto da teologia arminiana e da uniformidade religiosa. Em 1637, Carlos I e Laud tentaram fazer com que os presbiterianos da Escócia se submetessem ao governo e culto da Igreja da Inglaterra, com seu sistema episcopal (bispos e arcebispos). No ano seguinte, os escoceses assinaram um Pacto Nacional no qual se comprometiam a defender o presbiterianismo e entraram em guerra contra o rei.
Carlos precisava de mais homens e dinheiro para lutar contra os escoceses e assim foi forçado a convocar a eleição de um Parlamento. Para seu horror, os ingleses elegeram um Parlamento puritano. Ele rapidamente dissolveu o parlamento e convocou nova eleição, que resultou em uma maioria puritana ainda mais expressiva. O rei tentou novamente tentou dissolver o Parlamento, que entrou em guerra contra ele. Estava iniciada a guerra civil inglesa.
Entre outras coisas, esse Parlamento puritano voltou sua atenção para a questão religiosa. Há 75 anos os puritanos vinham insistindo que a Igreja da Inglaterra tivesse uma forma de governo, doutrinas e culto mais puros. Assim sendo, o Parlamento convocou a “Assembléia de Teólogos de Westminster”, que ficou composta de 121 dos ministros mais capazes da Inglaterra, além de 20 membros da Câmara dos Comuns e 10 membros da Câmara dos Lordes. Todos os ministros, exceto dois, eram da Igreja da Inglaterra. Praticamente todos eles eram puritanos, calvinistas. Infelizmente, não havia unanimidade entre eles quanto à forma de governo: a maioria era composta de presbiterianos, muitos eram partidários da forma congregacional e alguns defendiam o episcopalismo. Os debates mais longos e acalorados foram travados nessa área.
A Assembléia de Westminster iniciou seus trabalhos na Abadia de Westminster, em Londres, no dia 1° de julho de 1643, e continuou em atividade durante cinco anos e meio. Nesse período, houve 1163 reuniões do plenário e centenas de reuniões de comissões e subcomissões.
4. A conexão escocesa
Mal haviam começado os trabalhos, as forças parlamentares começaram a ficar em desvantagem na guerra. Rapidamente foi enviada uma delegação à Escócia em busca de auxílio. Os escoceses concordaram em enviar socorro, mediante duas condições: (a) todos os membros da Assembléia de Westminster e do Parlamento deviam assinar uma Liga e Pacto Solene a ser redigido pelos escoceses; (b) os escoceses iriam nomear alguns representantes junto à Assembléia de Westminster. Ao assinarem esse documento, os ingleses se comprometeram a manter e defender a Igreja Presbiteriana da Escócia e a realizarem uma reforma da igreja “na Inglaterra e na Irlanda em sua doutrina, governo, culto e disciplina, de acordo com a Palavra de Deus e o exemplo das melhores igrejas reformadas”.
Os escoceses enviaram seis delegados à Assembléia de Westminster – quatro pastores e dois presbíteros – sem direito a voto. Os ministros eram: Alexander Henderson, Robert Baillie, George Gillespie e Samuel Rutherford. Esses poucos representantes escoceses exerceram uma influência decisiva sobre a Assembléia. Com a chegada dos escoceses e a assinatura da Liga e Pacto Solene em setembro de 1643, houve uma mudança radical no trabalho da Assembléia. Antes disso, a maior parte do tempo havia sido dedicada a uma revisão dos Trinta e Nove Artigos e não se pensara em elaborar uma nova Confissão de Fé. Agora os Trinta e Nove Artigos foram postos de lado e passou-se a fazer uma reforma profunda na Igreja da Inglaterra.
A Assembléia de Westminster era um conjunto de homens não somente eruditos, mas profundamente espirituais. Gastou-se muito tempo em oração e tudo foi feito com espírito de reverência. Robert Baillie, um dos representantes escoceses, descreveu um dos dias de jejum e oração: “Depois que o Dr. Twisse deu início com uma breve oração, o Sr. Marshall orou longamente por duas horas, confessando mui piedosamente os pecados dos membros da Assembléia… Depois disso, o Sr. Arrowsmith pregou por uma hora, e então foi cantado um salmo. Em seguida, o Sr. Vines orou por quase duas horas, o Sr. Palmer pregou por uma hora e o Sr. Seaman orou por quase duas horas; em seguida, foi cantado um salmo. Depois disso, o Sr. Henderson os levou a uma breve e suave reflexão sobre as faltas confessadas e outras faltas vistas na Assembléia, para serem corrigidas. O Dr. Twisse encerrou com breve oração e bênção. Deus estava presente de modo tão claro nesse exercício devocional que nós certamente esperamos uma bênção tanto sobre os assuntos da Assembléia quanto sobre todo o reino”.
5. O trabalho da Assembléia
Durante seus cinco anos e meio de atividade, a Assembléia de Westminster produziu os chamados Padrões Presbiterianos. À medida que era concluído, cada documento era encaminhado ao Parlamento como o “humilde conselho” da Assembléia. O Parlamento não aprovou automaticamente o trabalho da Assembléia, mas gastou muito tempo estudando e discutindo cada documento. Os Padrões Presbiterianos, na ordem em que foram concluídos pela Assembléia, são os seguintes: (a) Diretório do Culto Público a Deus: foi concluído em dezembro de 1644 e aprovado pelo Parlamento em janeiro de 1645. Substituiu o Livro de Oração Comum. (b) Forma de Governo Eclesiástico e Ordenação: foi concluída em novembro de 1644 e aprovada pelo Parlamento em 1648. Era uma forma presbiteriana de governo e substituiu o episcopalismo na Igreja da Inglaterra. (c) Confissão de Fé: foi concluída em dezembro de 1646 e aprovada pelo Parlamento em março de 1648. (d) Catecismos Maior e Breve: foram concluídos no final de 1647 e aprovados pelo Parlamento em setembro de 1648. (e) Saltério: versão métrica dos salmos para o culto; havia várias versões concorrentes, mas a de Francis Rous, membro do Parlamento e da Assembléia, foi finalmente aprovada em novembro de 1645, após uma extensa revisão. Foi aprovado pelo Parlamento no ano seguinte.
6. A Confissão de Fé
O esboço inicial da Confissão de Fé de Westminster foi preparado por duas comissões a partir de outubro de 1644, com a plena participação dos representantes da Igreja da Escócia. O plenário da Assembléia discutiu o documento de julho de 1645 a dezembro de 1646. Alguns dos debates foram acalorados, especialmente sobre temas como o Decreto de Deus, a Liberdade Cristã e a Liberdade de Consciência, e a liderança de Cristo. De um modo geral, houve uma notável unanimidade entre os participantes.
No dia 26 de novembro de 1646 o texto ficou pronto, com a exceção do prefácio e de algumas emendas. Estes foram concluídos no 4 de dezembro, quando a Confissão de Fé foi apresentada à Câmara dos Comuns. Todavia, o Parlamento exigiu a apresentação de textos bíblicos de apoio, cuja preparação e discussão continuou até abril de 1647. Em 29 de abril, a Confissão com as passagens bíblicas foi apresentada às duas câmaras. A Câmara dos Comuns determinou a impressão de 600 cópias, somente para os membros do Parlamento e da Assembléia. O título era: “O humilde conselho da Assembléia de teólogos que por autoridade do Parlamento ora está reunida em Westminster… com respeito a uma Confissão de Fé, com a adução de citações e textos da Escritura”.
A Confissão foi aprovada pelo Parlamento somente em 1648, com o seguinte título: “Artigos de religião cristã, aprovados e sancionados por ambas as casas do Parlamento, segundo o conselho da Assembléia de teólogos ora reunida em Westminster por autoridade do Parlamento”.
A Confissão de Fé é uma expressão da teologia agostiniana e calvinista que há mais de um século vinha influenciando os teólogos ingleses. Especificamente, a forma da Confissão foi influenciada pelos chamados Artigos Irlandeses, elaborados pelo bispo Ussher em 1615. Quanto ao esquema teológico geral sob o qual os teólogos de Westminster agruparam suas principais doutrinas, trata-se do sistema conhecido como Teologia Federal ou Teologia do Pacto (Pacto das Obras e Pacto da Graça).
Como uma declaração da doutrina reformada e como uma afirmação do calvinismo do século 17, a Confissão de Fé é um documento extremamente moderado e judicioso. William Beveridge conclui: “Devemos agradecer a Deus por essa declaração sábia, completa e equilibrada de nossa fé, que chegou até nós como uma preciosa herança da Assembléia de Westminster”.
7. Eventos subseqüentes
Com o auxílio dos escoceses, as forças parlamentares lideradas por Oliver Cromwell esmagaram o rei Charles e seus exércitos. Cromwell e o exército inglês eram partidários do congregacionalismo; assim sendo, os presbiterianos foram expulsos do Parlamento em 1648. O rei foi decapitado na Torre de Londres em janeiro de 1649, sendo então criada a Comunidade (Commonwealth), tendo Cromwell como Lorde Protetor da Inglaterra e da Escócia.
Cromwell morreu em 1658 e dois anos depois foi restaurada a monarquia, com Carlos II no trono dos dois países. O episcopado foi restaurado, sendo aprovadas rígidas leis que impunham submissão ao governo e ao culto da Igreja da Inglaterra. Cerca de dois mil ministros presbiterianos foram expulsos de suas igrejas e residências. Seguiu-se um longo período de intolerância e cerceamento. Somente no século 19 foi organizada a Igreja Presbiteriana da Inglaterra (1876).
Na Escócia, os Padrões de Westminster foram prontamente adotados pela Assembléia Geral da Igreja Presbiteriana, substituindo os antigos documentos que vinham desde a época de John Knox. Isso é notável se lembrarmos que a Assembléia de Westminster era composta de 121 ministros puritanos ingleses e apenas quatro ministros escoceses. Os presbiterianos escoceses agiram assim por causa dos méritos intrínsecos dos Padrões de Westminster e em especial devido ao seu desejo de promover a unidade entre os presbiterianos das Ilhas Britânicas. Através da imigração e do esforço missionário dos presbiterianos escoceses, esses padrões foram levados para a Irlanda do Norte, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, África do Sul, Brasil e até aos confins da terra.
8. Relevância atual
A Confissão de Fé de Westminster é considerada uma das melhores e mais equilibradas exposições da fé reformada já escritas. Suas definições doutrinárias foram cuidadosamente elaboradas por alguns dos homens mais cultos e piedosos do século 17. Talvez a sua linguagem e algumas de suas ênfases pareçam estranhas à nossa mentalidade do início do século 21. Todavia, temos de reconhecer que a maior parte das suas formulações continuam plenamente válidas para os dias atuais. Embora seja um documento muito importante e valioso para os reformados, ela não está no mesmo nível da Escritura, ficando subordinada à mesma.
A Confissão de Fé pode ser considerada um pequeno manual de teologia bíblica. Seus 33 capítulos abordam os temas mais importantes da teologia cristã, conforme segue: a doutrina da Escritura Sagrada – cap. 1; a doutrina de Deus (ser e obras) – caps. 2-5; a doutrina do homem e da redenção – caps. 6-9; a doutrina da aplicação da salvação – caps. 10-15; a doutrina da vida cristã – caps. 16-19; a doutrina do cristão na sociedade – caps. 20-24;  a doutrina da igreja – caps. 25-31; e a doutrina das últimas coisas – caps. 32-33.
Os principais temas da teologia reformada são abordados na Confissão de Fé de Westminster: (a) a autoridade das Escrituras – cap. 1; (b) a soberania de Deus e a eleição – caps. 3, 10; (c) o conceito do pacto – cap. 7; (d) a integração da doutrina com a vida cristã – cap. 16; (e) a relação entre lei e evangelho – cap. 19; (f) a importância da igreja e dos sacramentos – caps. 25-29; (g) o sistema de governo – cap. 31; (h) o relacionamento entre o reino de Deus e o mundo.

Entendendo a Confissão de fé de Westminster

O que a Confissão de Fé de Westminster diz sobre a interpretação das Escrituras

O neoliberalismo
Muitos estudiosos e teólogos modernos concordam que o antigo liberalismo, como movimento histórico do século passado, está agonizando. Entretanto, muitos dos pressupostos do antigo liberalismo quanto à interpretação das Escrituras têm sobrevivido e encontrado expressão em várias correntes teológicas e hermenêuticas que historicamente pertencem ao período pós-moderno.
O rótulo “neoliberalismo” tem sido aplicado a esse movimento teológico-hermenêutico que preserva alguns dos pressupostos racionalistas do antigo liberalismo e que se utiliza de conceitos da filosofia, hermenêutica, linguística e teologia pós-modernas. É particularmente o sistema de interpretação das Escrituras do neoliberalismo que se constitui um desafio urgente à doutrina reformada.
A hermenêutica neoliberal
De acordo com a hermenêutica neoliberal, é impossível alcançar-se o sentido original do texto bíblico. É possível explorar uma pretensa “reserva-de-sentidos” que há no texto da Bíblia, extraindo “sentidos” que dependerão das circunstâncias em que estivermos. Consequentemente, a hermenêutica neoliberal coloca a verdade apenas como um ideal a ser perseguido, ideal esse que jamais será alcançado com segurança aqui nessa vida. Como resultado, jamais poderemos ter certeza absoluta de que conhecemos a verdade. O máximo que poderemos fazer é afirmar com convicção um dos muitos sentidos que poderíamos encontrar no texto.
Partindo de algumas teorias modernas de linguística, essa hermenêutica sugere que os autores bíblicos poderiam ter escrito algo que não correspondia à sua intenção original. Exagera a distância entre o autor e o texto ao ponto de não podermos mais encontrar a intenção do autor nos textos.
Ainda postulam que a Bíblia nada mais é que uma interpretação da vida e do mundo feita por seus autores, uma maneira de interpretar a realidade. O texto bíblico é reduzido ao resultado da busca feita pelos seus autores de sentido na realidade e na história. Esse ensino fere frontalmente o conceito reformado de que a Bíblia, mesmo tendo sido escrita por homens situados no tempo e no espaço, é a revelação autoritativa de Deus, e a transforma numa tentativa humana de compreender a realidade.
Também afirma que é impossível termos conhecimento do sentido pleno e verdadeiro das Escrituras, já que o texto não tem um único sentido, pleno e verdadeiro, mas múltiplos sentidos. Seguindo o pluralismo religioso do pós-modernismo, rejeita o conceito de verdade proposicional (de que uma ideia possa ser verdadeira) e assim a possibilidade de alcançarmos a interpretação correta de uma passagem bíblica.
Desafios à teologia reformada
Essa abordagem interpretativa tem servido de ferramenta para o surgimento das teologias ideológicas, teologias feministas, de libertação e outras, já que transfere o sentido do autor e do texto para o leitor.
Tradicionalmente, a hermenêutica reformada reconhece a necessidade de aplicarmos o texto bíblico às diversas situações em que nos encontramos, mas vê essas aplicações não como “sentidos” novos e múltiplos de um mesmo texto, mas como a significação do sentido único de um texto para as diversas situações da vida.
As implicações da hermenêutica neoliberal acabam por tornar a mensagem das Escrituras inacessível à Igreja. De acordo com eles, acabamos sem Escritura, sem revelação, sem verdade e sem pregação, podendo no máximo pregar apenas uma interpretação nossa do texto mas jamais a verdade divina.
Se não podemos alcançar o sentido das Escrituras não nos resta qualquer base para a doutrina e a prática da igreja, para decisões teológicas, para o ensino doutrinário, para a ordem eclesiástica. Instala-se o caos onde cada um pode interpretar como queira as Escrituras, as decisões da Igreja e seus símbolos de fé.
Os princípios de interpretação de Westminster
Lembremos o que os puritanos escreveram sobre esse assunto na Confissão de Fé de Westminster. O capítulo I da Confissão trata das Escrituras, e neles, os puritanos expressaram suas convicções quanto à correta interpretação das Escrituras. Em resumo, são estas:
  1. Para evitar que Sua vontade e a verdade se perdessem pela corrupção dos homens e a malícia de Satanás, Deus fê-la escrever nas Escrituras Sagradas. A inspiração das Escrituras resulta no fato de que elas expressam fielmente a vontade de Deus, a verdade divina.
“Ainda que a luz da natureza e as obras da criação e da providência de tal modo manifestem a bondade, a sabedoria e o poder de Deus, que os homens ficam inescusáveis, contudo não são suficientes para dar aquele conhecimento de Deus e da sua vontade necessário para a salvação; por isso foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isto torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo” (CFW, I.1).
Referências – Sl 19:1-4; Rm 1:32, e 2:1, e 1:19-20, e 2:14-15; 1 Co 1:21, e 2:13-14; Hb 1:1-2; Lc 1:3-4; Rm 15:4; Mt 4:4, 7, 10; Is 8:20; 1 Tm 3:15; 2 Pe 1:19.

  1. A possibilidade de conhecermos o sentido das Escrituras, sentido esse pretendido por Deus através do autor humano:
“Todo o conselho de Deus concernente a todas as coisas necessárias para a glória dele e para a salvação, fé e vida do homem, ou é expressamente declarado na Escritura ou pode ser lógica e claramente deduzido dela” (CFW, I.6).

  1. O Espírito Santo garante a compreensão salvadora das coisas reveladas na palavra de Deus, as Escrituras
“À Escritura nada se acrescentará em tempo algum, nem por novas revelações do Espírito, nem por tradições dos homens; reconhecemos, entretanto, ser necessária a íntima iluminação do Espírito de Deus para a salvadora compreensão das coisas reveladas na palavra, e que há algumas circunstâncias, quanto ao culto de Deus e ao governo da Igreja, comum às ações e sociedades humanas, as quais têm de ser ordenadas pela luz da natureza e pela prudência cristã, segundo as regras gerais da palavra, que sempre devem ser observadas” (CFW, I.6; ver Catecismo Maior pergunta 4)
Ref. 2 Tm 3:15-17; Gl 1:8; 2 Ts 2:2; Jo 6:45; 1 Co 2:9, 10, 12; 1 Co 11:13-14.

  1. O sentido das Escrituras é tão claramente exposto e explicado que a suficiente compreensão das mesmas pode ser alcançada através dos meios ordinários (pregação, leitura e oração)
“Na Escritura não são todas as coisas igualmente claras em si, nem do mesmo modo evidentes a todos; contudo, as coisas que precisam ser obedecidas, cridas e observadas para a salvação, em um ou outro passo da Escritura são tão claramente expostas e explicadas, que não só os doutos, mas ainda os indoutos, no devido uso dos meios ordinários, podem alcançar uma suficiente compreensão delas” (CFW, I.7)
Ref. 2 Pe 3:16; Sl 119:105, 130; At 17:11.

  1. Há somente um sentido verdadeiro e pleno em cada texto da Escritura e não múltiplos sentidos, e esse sentido pode ser alcançado e compreendido pela Igreja
“A regra infalível de interpretação da Escritura é a mesma Escritura; portanto, quando houver questão sobre o verdadeiro e pleno sentido de qualquer texto da Escritura (sentido que não é múltiplo, mas único), esse texto pode ser estudado e compreendido por outros textos que falem mais claramente” (CFW, I.9)
Ref. At 15:15; Jo 5:46; 2 Pe 1:20-21.

  1. Exatamente porque as Escrituras não têm sentidos múltiplos é que as mesmas são o supremo tribunal em controvérsias religiosas, aos quais a Igreja sempre deve apelar
“O Velho Testamento em Hebraico (língua vulgar do antigo povo de Deus) e o Novo Testamento em Grego (a língua mais geralmente conhecida entre as nações no tempo em que ele foi escrito), sendo inspirados imediatamente por Deus e pelo seu singular cuidado e providência conservados puros em todos os séculos, são por isso autênticos e assim em todas as controvérsias religiosas a Igreja deve apelar para eles como para um supremo tribunal” (CFW, I.8; cf. como exemplo XXIX.6).
Ref. Mt 5:18; Is 8:20; 2 Tm 3:14-15; 1 Co 14; 6, 9, 11, 12, 24, 27-28; Cl 3:16; Rm 15:4.

  1. A vontade de Deus está claramente expressa nas Escrituras e ao alcance da igreja, de forma que a mesma pode distinguir entre culto aceitável a Deus e os que não são.
“A luz da natureza mostra que há um Deus que tem domínio e soberania sobre tudo, que é bom e faz bem a todos, e que, portanto, deve ser temido, amado, louvado, invocado, crido e servido de todo o coração, de toda a alma e de toda a força; mas o modo aceitável de adorar o verdadeiro Deus é instituído por ele mesmo e tão limitado pela sua vontade revelada, que não deve ser adorado segundo as imaginações e invenções dos homens ou sugestões de Satanás nem sob qualquer representação visível ou de qualquer outro modo não prescrito nas Santas Escrituras” (CFW, XXI,1)

  1. Apesar dos eleitos serem humanos e pecadores, recebem de Deus o que é necessário para compreenderem as coisas de Deus para a salvação
“Todos aqueles que Deus predestinou para a vida, e só esses, é ele servido, no tempo por ele determinado e aceito, chamar eficazmente pela sua palavra e pelo seu Espírito, tirando-os por Jesus Cristo daquele estado de pecado e morte em que estão por natureza, e transpondo-os para a graça e salvação. Isto ele o faz, iluminando os seus entendimentos espiritualmente a fim de compreenderem as coisas de Deus para a salvação, tirando-lhes os seus corações de pedra e dando lhes corações de carne, renovando as suas vontades e determinando-as pela sua onipotência para aquilo que é bom e atraindo-os eficazmente a Jesus Cristo, mas de maneira que eles vêm mui livremente, sendo para isso dispostos pela sua graça” (CFW X,1; ver também o Catecismo Maior, pergunta 157).

Conclusão:
Esse pequeno resumo dos princípios de interpretação bíblica que se encontram na Confissão de Fé de Westminster serve para mostrar que os puritanos, seguindo a linha de interpretação dos reformadores, entenderam que a única maneira de interpretar as Escrituras sem violar a sua integridade, propósito e escopo, era procurar entender o sentido que os autores humanos haviam pretendido transmitir. Reconheciam que essa nem sempre era uma tarefa fácil, mas confiavam que, com a ajuda da ação iluminadora do Espírito, do conhecimento das línguas originais e do contexto histórico, poderiam alcançar esse sentido. A teologia que temos na Confissão de Fé de Westminster é o resultado do emprego sistemático dessa hermenêutica.